domingo, 8 de setembro de 2019

Bento Domingues - De Agosto para Setembro, Deus mudou?



1. Quando interrompi estas crónicas, as preocupações dos meios de comunicação, acerca do fenómeno religioso, estavam centradas em algumas sondagens, nomeadamente numa realizada na Alemanha, revelando que 52% dos inquiridos acreditava em Deus, mas só 22% se declarava religioso e comprometido com alguma instituição religiosa. Saiu daí o slogan: “espiritualidade sim, religião não”! Uma minoria mais jovem designava-se a si própria como “crente sem religião”.
Não vou regressar hoje a essa problemática. Com a modernidade, a religião deixou, em alguns países, de estruturar o Estado e a sociedade, mas só por miopia se poderia julgar que iria desaparecer. Foi-se reconfigurando, de modos diferentes, segundo as geografias culturais. As medições estatísticas são importantes para detectar alguns sinais de mudança. O futuro é, no entanto, o tempo das surpresas. Por razões que não irei explicitar, suponho que haverá muitas mudanças e eclipses, mas não me parece que o fim da religião, mesmo no Ocidente secularizado, esteja para breve.
Parece-me que o diálogo inter-religioso, no qual os participantes sejam capazes de rever as respectivas posições, no que poderão ter de agressivo, será um caminho com futuro. S. Pedro deixou uma boa regra para os cristãos: estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito [1].
S. Pedro tocou no essencial: convicção, razão e bons modos são o caminho do cristão e, se o diálogo correr mal, mais vale sofrer do que fazer sofrer.

2. No mês de Agosto, ao ler e ouvir ler alguns textos do Antigo Testamento (AT), indicados para a celebração diária da missa, senti-me arrepiado perante o ódio que os inspirava. Apesar da sua beleza literária, eram insuportáveis: Iavé mata e manda matar.
Deixo, aqui, apenas alguns exemplos: “Atravessastes o Jordão e chegastes a Jericó. Combateram contra vós os homens de Jericó, os amorreus, os perizeus, os cananeus, os hititas, os guirgaseus, os heveus e os jebuseus; mas Eu [Iavé] entreguei-os nas vossas mãos. Mandei diante de vós insectos venenosos que expulsaram os dois reis dos amorreus. Não foi com a vossa espada, nem com o vosso arco. Dei-vos, pois, uma terra que não lavrastes, cidades que não edificastes e que agora habitais, vinhas e oliveiras que não plantastes e de cujos frutos vos alimentais” [2].
“Jefté marchou contra os amonitas e travou combate contra eles; Iavé entregou-os nas suas mãos. Derrotou-os desde Aroer até às proximidades de Minit, tomando-lhes vinte cidades, e até Abel-Queramim; foi uma derrota muito grande; deste modo, os amonitas foram humilhados pelos filhos de Israel” [3].
Os filhos de Israel “abandonaram Iavé e adoraram Baal e os ídolos de Astarté. Inflamou-se a ira de Iavé contra Israel e entregou-os nas mãos de salteadores que os espoliaram e vendeu-os aos inimigos que os rodeavam. Eles já não foram capazes de lhes resistir. Para onde quer que saíssem, pesava sobre eles a mão de Iavé como um flagelo, conforme lhes havia dito e jurado; e foi muito grande a sua angústia” [4].
Com a entrada no mês de Setembro, parece que mudamos de Deus e de mundo. São textos tirados da tradição sapiencial. Frei Francolino Gonçalves, exegeta dominicano, membro da Comissão Bíblica Pontifícia e professor da Escola Bíblica de Jerusalém, faleceu há dois anos. Deixou-nos textos essenciais para ler a Bíblia com inteligência, para não cedermos a nenhuma espécie de fundamentalismo. Hoje, evoco um que aborda, precisamente, a distinção de dois iaveísmos. Diria, por conveniência fundada, que se trata de Iavé de Agosto diferente de Iavé de Setembro. O melhor, porém, abstraindo desta circunstância, é ouvir o próprio autor, mediante um fragmento de uma grande elaboração que pode ser lida, na íntegra, nos Cadernos ISTA acessíveis na Internet.
Na Bíblia, Deus não é apresentado só com uma pluralidade de nomes, mas também com uma multiplicidade de retratos. O que a Bíblia põe na boca de Deus, ou diz dele, sugere um grande número de imagens muito variadas, contrastadas e, nalguns casos, aparentemente contraditórias. A grande maioria é de uma grande beleza, mas também as há que são de uma notável fealdade, ou até assustadoras [5].
Francolino Gonçalves defendeu a ideia de que não devemos atribuir esse mundo bíblico apenas à corrente nacionalista, cujo centro é a eleição de Israel como povo de Deus e a aliança entre ambos. Já havia alguns autores que tinham discordado dessa amálgama. Segundo ele, os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem, por maioria de razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT [6].

3. Dei a palavra a Francolino Gonçalves. Na Homenagem Internacional que lhe foi prestada, na Universidade de Lisboa e no Convento de S. Domingos, no passado mês de Maio, a questão dos dois sistemas iaveístas foi objecto de várias intervenções. Eu próprio, na homilia que me pediram, tentei mostrar o alcance pastoral desta distinção: quando um Deus se apresenta como tendo escolhido um povo, com o qual estabeleceu uma aliança, e este povo se considera o eleito, o povo de Deus, estamos perante um Deus nacionalista. A causa de Deus e a causa da Nação passam a ser uma só, embora, de vez em quando, Deus manifeste que o povo depende dele, mas ele não depende do povo.
O nacionalismo continua a revelar-se como pouco recomendável para o bem da humanidade. Um nacionalismo divinizado é a peste das pestes.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] 1Pd 3, 13-17
[2] Josué 24, 11-13
[3] Juízes 11, 32-33
[4] Juízes 2, 13-15
[5] Cf. Frei Francolino J. Gonçalves, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Cadernos ISTA 22 (2009), pp. 107-152.

[6] Cf. nota 1, pág. 115

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