“Metade dos deputados no Parlamento não fazem
nada de concreto ou sequer útil, anda lá só a ocupar o tempo.”
Macário Correia
1. É evidente que estou contente com o crescimento económico, com as notas positivas das agências de rating, com a diminuição do desemprego... Significa esse meu contentamento que participo da aparente euforia nacional sobre a situação do país? Não, infelizmente, não. E vou tentar explicar.
Com a dívida pública que temos, com o endividamento privado para o consumo, dentro do fascínio causado pela percepção de que a situação económico-financeira está como nunca, com a recessão que se anuncia para a economia mundial (a Alemanha estagna, estão aí a “guerra” comercial entre os Estados Unidos e a China, o Brexit, a instabilidade na Itália...), e dado que vivemos internamente mais de uma situação conjuntural favorável do que de investimentos sólidos para um desenvolvimento estrutural sustentável, receio que o país venha a confrontar-se com percalços inesperados.
Tenho a sensação de que a aparente euforia tenha na sua fonte um manto de mentira e ilusão que se foi abatendo sobre o país. Porventura acabou a austeridade? Veja-se o preço dos combustíveis, a carga de impostos e taxas e mais taxas, não sem sublinhar os impostos indirectos, que são os mais injustos porque cegos. E as famosas cativações? A saúde está bem? Quem é que o pode dizer e garantir com verdade? A educação está bem? Sinceramente, com louváveis excepções até de excelência, não creio: falo com professores, autênticos e dedicados profissionais, e dizem-me que não; pessoalmente, temo que, com alguns novos métodos já superados noutros países, o permanente experimentalismo e o imenso facilitismo reinante, entre outras coisas, estejamos a contribuir para o apagamento do pensamento crítico e o que o escritor Pérez-Reverte denunciou recentemente: “nunca o ser humano foi tão estúpido como agora”; em relação aos professores, veja-se a instabilidade em que vivem: há antigos alunos meus da Faculdade que andam há anos de escola em escola, percorrendo o país de norte a sul, dificilmente podendo constituir família ou ter filhos, e instala-se a desmotivação; no ensino superior, reconheço manchas de excelência também, mas não sei se está, no seu todo, a contribuir para que o nível de conhecimento real e crítico se mantenha, e é necessário apoiar harmonicamente tanto as ciências ditas exactas e as tecnologias como as ciências humanas, pois, sem ética e humanismo, para onde pode levar-nos o progresso tecnológico? E ainda: em vez de se acabar com as propinas para todos, atribua-se bolsas aos mais frágeis economicamente, mas capazes.
Ainda neste domínio da educação, seja-me permitido um reparo a um recente despacho ministerial. Conheço casos dramáticos de transexuais que passaram e passam por imenso sofrimento. Por isso, é preciso, na educação, preparar para o respeito de todos. No entanto, por causa da orientação sexual, não se pode cair na desorientação de todos. Com o bom senso dos professores, o conselho de médicos e atendendo aos direitos dos pais no que à educação dos filhos se refere, as escolas são capazes de encontrar soluções adequadas para casos concretos, sem a necessidade de despachos eivados de ideologia que só podem levar à confusão universal. Quem está interessado nessas e outras confusões?
2. Está aí a campanha para novas eleições. Impõe-se que os Partidos sejam claros em pontos essenciais nos programas e nos debates. Por exemplo:
2. 1. Recentemente, a anterior procuradora-geral da República afirmou que o Estado está “capturado” por redes de corrupção e compadrio. Joana Marques Vidal lamentou concretamente: “Se nós pensarmos um pouco naquilo que são as redes de corrupção e de compadrio, nas áreas da contratação pública, que se espalham às vezes por vários organismos de vários ministérios, autarquias e serviços directos ou indirectos do Estado, infelizmente nós estamos sempre a verificar isso.” Muita gente tem denunciado esta situação como um cancro. Pergunta-se: que compromisso assumem os Partidos neste domínio gravíssimo?
2. 2. Contra o contexto do manto de mentira que desceu sobre o país, os Partidos devem assumir claramente as promessas que fazem, com datas claras de cumprimento e com que verbas. Tudo claro. Deixem-se, por favor, de arruadas e argumentem com números, pois, se lhes explicarem, os portugueses perceberão e poderão assumir escolhas racionais. Não se pode é continuar com promessas e mais promessas, algumas repetidas ao longo de anos e nunca cumpridas. Por exemplo, o que se vai fazer pela ferrovia — meu Deus, como foi possível chegar à presente situação? Por favor, não façam promessas que sabem que não vão cumprir, porque não podem. Vão fazer o quê pelo interior? Os que falam disso sabem o que é o interior?
2. 3. Ponto decisivo: esclareçam o que pretendem fazer em relação à justiça, não só em relação à justiça social — há muita miséria ainda no país, nada de ilusões —, mas à justiça-poder judicial, órgão de soberania, independente. A justiça continua lenta e, por isso, pouco eficaz, e, se se ler e ouvir a opinião pública: que foi atingida pelo véu de alguma desconfiança. Lembro o Presidente da República referindo-se, no passado 10 de Junho, às “falências na justiça”: Portugal não pode “minimizar cansaço, corrupções, falências na justiça.”
2. 4. Neste contexto, a Banca. Uma catástrofe! Há anos que o Estado, isto é, os contribuintes, andam a pagar, a tapar buracos com milhares de milhões de euros, e não há consequências para as más administrações e os desvios?... Neste país, é necessário repor setenta cêntimos ao fisco — e eu acho bem —, mas desaparecem milhares de milhões de euros, e não acontece nada? E os responsáveis maiores chamados a juízo... tornaram-se entretanto amnésicos?! Os Partidos devem dizer o que se propõem fazer para acabar com esta falta de vergonha.
2. 5. O que vão fazer para que haja transparência na política e com os políticos? Sinceramente, atendendo às suas responsabilidades, penso que os políticos são mal pagos e até pergunto: será essa uma das razões por que para as tarefas políticas a maior parte das vezes não vão os melhores e estamos cheios de incompetentes? Mas, por outro lado, verifico que imensa gente se bate por, como diz o povo, “ir para lá” — para onde? Para o poder. Há muita sedução pelo poder, pois ele é “o maior afrodisíaco” (Henry Kissinger dixit). Mas também deve haver muitos privilégios que moram para essas bandas. Que haja, portanto, transparência. É preciso acabar com o exemplo inacreditável de deputados que faltam descaradamente às sessões do Parlamento. E donde vêm tantas regalias e privilégios auto-concedidos? Já não há vergonha em Portugal? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam milhões de euros (mais de seis milhões este ano), que extras quase duplicam o salário dos deputados (milhões só para cobrir as viagens para casa ou em trabalho político no seu círculo), para não falar no caso dos deputados insulares... E a maior parte dos deputados não morrerão de cansaço, a trabalhar no e para o Parlamento, como Macário Correia denunciou numa entrevista recente: “Metade dos deputados no Parlamento não fazem nada de concreto ou sequer útil, anda lá só a ocupar o tempo.” E ficam sempre aberturas para contactos presentes e sobretudo futuros, numa ligação in-transparente de política e negócios...
Aí está a razão por que já falei aqui uma vez de uma proposta, embora sabendo que é irrealizável: que os votos em branco formassem o “partido da cadeira vazia” no Parlamento. Sinceramente, não acredito que, tirando dignas e honrosas excepções, a maior parte dos candidatos andem por aí, na campanha, lutando por todos os meios para serem eleitos, porque querem realmente servir o bem comum. Lamentável, pois considero a política uma das actividades humanas mais nobres e, do ponto de vista cristão, uma das formas mais altas de amor, de amor social.
2. 6. A actual Presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, entre muitos outros cargos políticos, foi também Ministra da Família. Há muito que admiro que na Alemanha haja um Ministério da Família. Dado o tsunami demográfico de Portugal, quero que os Partidos digam claramente o que se propõem fazer a favor da natalidade e da família.
2. 7. Na campanha, os Partidos são obrigados a dizer claramente aos cidadãos quais são as suas posições sobre a eutanásia (e digam-no sem eufemismos, porque “morte medicamente assistida” todos querem, eu incluído), sobre se pensam em legalizar drogas com fins recreativos, se têm em mente alargar os prazos para o aborto legal, e qual é a sua posição sobre a gravidez de substituição (vulgarmente conhecida como “barrigas de aluguer”); a propósito: porque quiseram os deputados enfrentar o Tribunal Constitucional na recente lei, face à qual ao Presidente da República não restava outra alternativa que não fosse a fiscalização preventiva desse Tribunal? Não venham, por favor, mais tarde, já no Parlamento, com surpresas quanto a estas questões. Seria inqualificável em matérias tão delicadas.
2. 8. Também estudei filosofia política e, portanto, tenho obrigação de saber que a política não é uma ciência exacta (se o fosse, entregava-se a simples tecnocratas), é uma ciência prática, dificílima, talvez sobretudo uma arte, a arte do possível, com muito de lúdico, de espectáculo, no bom sentido, que tem de jogar com interesses muitas vezes contraditórios, com a complexidade do humano e as suas paixões e, hoje, na complexidade de um mundo globalizado e cada vez mais interdependente, o que faz com que, também no quadro da democracia com prazos curtos de governação, a política fique atenazada: é necessário decidir rapidamente e para um tempo curto o que pode ter consequências dramáticas no tempo longo... Também por isso é essencial a racionalidade política em ordem ao bem comum, bem para lá dos interesses próprios e partidários. E a competência. Aqui, é necessário pensar sempre mais longe e determinar um consenso mínimo nacional, com duração suficiente para a sua avaliação, sobre a educação, a justiça, a saúde, a segurança social. Numa hierarquia de valores, que anda muitas vezes, desgraçadamente, transtornada. Para evitar o sobressalto permanente. E com que geoestratégia?
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia