«Dar-se conta do milagre do Ser e de se ser.
Há maravilha que nos abale mais na raiz de nós do que esta?»
1. Andam enganados aqueles e aquelas que, no decurso do tempo, fizeram uma leitura literal do Génesis, o primeiro livro da Bíblia. Porque, concretamente nos primeiros três capítulos, não se trata de uma narrativa histórica, mas de um mito, uma estória. O filósofo Hegel, um dos cumes do pensamento, embora não fosse exegeta, viu mais, mais fundo e de modo mais penetrante do que muitos exegetas, quando leu essas primeiras páginas sobre a criação, Adão e Eva e o chamado “pecado original”.
No princípio, Deus fez a Terra e os céus. E criou Adão e Eva, que viviam no Éden, o paraíso terreal. Não podiam comer da árvore que estava no meio do jardim, a árvore da ciência do bem e do mal. Comeram e foram expulsos do paraíso. O que aqui está, diz Hegel, é a passagem da animalidade à humanidade e à grandeza de ser ser humano, mas também ao seu carácter dramático e mesmo trágico. Souberam que estavam nus. Comeram da árvore da ciência do bem e do mal e ficaram a saber que são seres humanos, portanto, conscientes de si mesmos, conscientes de que são conscientes, com consciência reflexiva, que os outros animais não têm. Essa é a nudez humana, na solidão metafísica: cada um está só, é si mesmo de modo único e intransferível.
Deus também tinha dito que, se comessem, morreriam. Comeram e souberam que o ser humano é mortal, o que o animal não sabe. Quando dizemos — cada um e cada uma — “eu”, cada uma e cada um di-lo de modo exclusivo e único e sabe que há-de morrer e angustia-se face à morte: “Ai, que me roubam o meu eu”, gritava Unamuno. Esta é a constituição do ser humano. E não é possível voltar atrás, porque a entrada do jardim do Éden, símbolo da inconsciência animal, é guardada por querubins com a espada flamejante.
E o Homem também tem de trabalhar, disse Deus. O trabalho é constitutivo do ser humano. É transformando o mundo, mundanizando-se, que o Homem vem a si como sujeito e se humaniza. No mundo, está de algum modo fora do mundo; na natureza, está fora e acima da natureza. Pelo trabalho realiza-se e projecta-se e toma consciência de que é social, pois é em comum que nos realizamos, contribuindo para a obra comum que é o bem comum, na síntese de presente, passado e futuro.
Uma das minhas reflexões diárias, quando tomo o pequeno-almoço: estou ali, só, e com tantos! Quem semeou o trigo ou o centeio e cozeu o pão que estou a comer? Quem colheu o café, quem o transportou de partes longínquas, quem o preparou? E assim sucessivamente. Por exemplo, ensinaram-me a ler e pude ler obras da grande filosofia e da grande literatura, que outros, autores de há pouco tempo ou de há séculos, ergueram!!! E quem produziu os livros e quem traduziu essas obras? E assim sucessivamente..., desde o carro que me transporta da casa onde vivo e que eu não construí à cidade onde se encontra a minha universidade, que eu também não construí, passando pela auto-estrada que existe pelo trabalhos de tantos que eu não sei quem são... Estamos sempre unidos com tantos, com todos, pelo trabalho comum!
2. Mas o Homem não se define apenas pelo trabalho. Porque é igualmente um ser festivo. Até Deus se lembrou disso, também na Bíblia: que haveria um dia consagrado ao descanso e à festa: o Sábado, depois, o Domingo (o dia do Senhor e do encontro da família e da alegria).
O que fez Jesus durante a maior parte da sua vida? Trabalhou, e trabalhou no duro. Infelizmente, quase nunca se ouve falar disso nas homilias dos padres. Dizemos normalmente que Jesus foi, como o seu pai, José, carpinteiro: “Não é este o filho do carpinteiro?”, perguntaram os seus vizinhos de Nazaré, quando voltou à sua aldeia para anunciar a Boa Nova do Reino de Deus. Segundo os Evangelhos, escritos em grego, diz-se mais, pois escrevem que era tektôn, isto é, era o que se dizia antigamente: um “faz tudo”, que tanto era capaz de levantar uma casa como de preparar alfaias agrícolas. E pode ter trabalhado também na Decápole, sabendo, por isso, algo de grego e de latim, para lá da língua materna, o aramaico e o hebraico. Porque trabalhou, para ganhar a vida, ele sabia o valor e a importância do dinheiro, mas também o seu perigo, quando se faz dele o objectivo da vida e se explora: Jesus percebeu perfeitamente a relação que tão frequentemente se estabelece entre quem tem muito dinheiro e quer enriquecer a todo o preço, e os trabalhadores que são explorados. Por isso, pregou constantemente: “Não podeis servir a Deus, que é Pai e Mãe e cujo único interesse é o bem de todos os seus filhos e filhas, e a Dinheiro — não ao dinheiro, mas a Dinheiro, como se fosse um nome próprio, Dinheiro enquanto um deus ao qual se entrega vida e a quem se confia a existência e o seu sentido.
Mas Jesus também descansou, porque se deve ter sentido muitas vezes esgotado. Já durante a chamada “vida pública”, dizem também os Evangelhos, era tanto o trabalho e o cansaço, pois as multidões não o largavam, que convocava por vezes os Apóstolos para um lugar ermo, tranquilo, onde pudessem descansar e conversar sobre o essencial. E deslumbrou-se com a alegria da beleza: “Contemplai o esplendor dos lírios do campo e das searas!”. Alegrou-se em festas de casamento e dançou. E passava noites na montanha a rezar, na maior intimidade com Deus, a quem chamava querido Papá, querida Mamã. Exaltou-se com o milagre da vida.
Agora, estão aí as férias. E é preciso gozá-las com gáudio, de tal maneira que delas não se venha mais cansado do que quando se partiu para elas, que é o que tantas vezes acontece. É importante sublinhar, até do ponto de vista etimológico, o carácter festivo associado às férias e aos dias feriados. A palavra latina feria, no plural feriae, tem o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa.” O mesmo se observa noutras línguas: vacances, vacaciones, em francês e espanhol, respectivamente, têm o seu étimo também no latim: vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, isto é, em dias santos. Os alemães têm duas palavras: Ferien e Urlaub, sendo o étimo da primeira feriae e a raiz da segunda, Urlaub, Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.
Portanto, as férias não podem ser de modo nenhum um mero interregno no trabalho para, depois, repondo as forças, se poder trabalhar ainda mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: retomar as alegrias simples e a experiência funda de que o ser humano é um ser festivo e fim em si mesmo. Então? Apanhar Sol na praia, no campo, na montanha, ler e escrever poesia, aventurar-se num grande romance da literatura, dançar, ouvir o silêncio e ouvir música, a grande música que nos remete para origens imemoriais, lá onde nunca estivemos, e para a transcendência toda, o lá onde verdadeiramente queremos estar, o indizível, lá onde verdadeiramente seremos nós. Reaprender a ver o Sol a nascer no oriente e a pôr-se no ocidente. E se for no oceano!... Contemplar e acolher o perfume de uma rosa, “que é sem porquê”, como observou o místico Angelus Silesius. Ter a alegria de estar com os amigos e a família, com o tempo todo, à volta de uma mesa. Dar-se conta do milagre do Ser e de se ser. Há maravilha que nos abale mais na raiz de nós do que esta? Antes de ser isto ou aquilo, professor ou médico ou operário, muito ou menos culto, mais baixo ou mais alto, com mais dinheiro ou menos dinheiro, eu sou. Eu.
P. S.: Não costumo responder às críticas que me fazem. Mas, aqui, estão ideias em causa. O Padre Gonçalo Portocarrero de Almada terminou o seu recente texto no Observador, “Obviamente demito-o”, com este parágrafo: “Enquanto em Portugal há ‘católicos’ que, como o P. Anselmo Borges e José Manuel Pureza, respectivamente negam o dogma da virgindade de Maria e promovem a eutanásia, do Papa Francisco chega, em boa hora, um sinal inequívoco de coerência doutrinal e de coragem pastoral.”
Como a formulação pode ser manhosa e, dada a pressa com que presentemente se vive e lê, se pode não atender ao “respectivamente” do texto, corro o risco de ser incluído na dupla condenação. Por isso, esclareço que, quanto à virgindade de Maria, continuo a sublinhar que a teologia não é um tratado de anatomia e, em ordem a mais esclarecimentos, remeto para o meu texto longo, também no Observador, “Narrativas evangélicas do Natal”. Quanto à minha posição sobre a eutanásia, remeto concretamente — peço desculpa pela publicidade — para o meu próximo livro, a sair em Setembro: Conversas com Anselmo Borges. A Vida, as Religiões, Deus.
Anselmo Borges, no DN
Padre e professor de Filosofia