domingo, 28 de julho de 2019

Bento Domingues - Meditar em qualquer lugar



"Somos nós, que andamos distraídos e muito enganados acerca do sentido da vida, que precisamos, com insistência, de rezar pela nossa conversão"

1. Ao chegar esta altura do ano, várias pessoas, na linha destas crónicas, pediam-me sugestões de leitura para férias. Não esperava muito das minhas indicações. Quem está habituado a ler ao longo do ano não precisa de recomendações. Quem, por razões profissionais, passa o ano a fazer leituras obrigatórias julga que, nas férias, poderá recuperar outro género de obras sempre adiadas. Para quem não adquiriu a paixão dos livros, não vai ser nas férias que a vai ganhar.
Observo que, nas viagens de comboio e de metro, as mãos não estão ocupadas com livros e raramente com jornais. O metro até abandonou a experiência do jornal gratuito. Sei que esta observação é de um velho. Desconhece as múltiplas aplicações culturais da revolução tecnológica dos meios comunicação: um pequeno objecto pode ser usado para acesso à Internet, visualização de fotos, vídeos, leitura de livros, jornais, revistas e ainda com jogos para entretenimento.
Dizem-me, por isso, que os hábitos de leitura, não só não se perderam como até se intensificaram e aumentaram os “escritores”. As mãos estão sempre ocupadas a receber e a enviar mensagens. A Internet e as suas redes possibilitam contacto permanente e as últimas informações, mas também o acesso a bibliotecas inteiras.
Os jornais em papel estão a desaparecer e a serem substituídos por jornais online. Já existem padres a rezar o breviário e a celebrar a missa pelo telemóvel, mais ou menos sofisticado.

2. Não resisto, no entanto, a recomendar uma das últimas obras de José Mattoso, Levantar o Céu. Os labirintos da sabedoria[1]. Foi um dos seus textos – Contemplação e acção, ontem e hoje – que provocou esta crónica. Lembrei-me dele ao ler as passagens do Evangelho seleccionadas para estes dois últimos Domingos. No primeiro, Jesus é muito bem recebido por Marta em sua casa. Tinha uma irmã, Maria, que não parecia muito dotada para as lides domésticas. A determinada altura, Marta já não pode mais e interpela o próprio Jesus, entretido em conversa com Maria: estais aí a conversar e o trabalho caiu-me todo em cima. Achas que está bem? O insólito é que o convidado toma a defesa de Maria e parece desvalorizar a trabalheira de Marta.
Procurou-se ver aqui dois tipos de organização da vida religiosa, activa e contemplativa, cuja história na via da Igreja foi traçada, com mão de mestre, por José Mattoso.
Afinal, o que estava em causa era outra coisa: a situação da mulher que Jesus encontrou no seu povo, tipificada pela figura de Marta, a mulher escrava do trabalho doméstico sem acesso à Palavra divina e a mulher libertada pelo Evangelho de Cristo, isto é, na mesma situação que, até aí, era reserva masculina. Esta forma literária de proceder é muito característica dos Evangelhos: criar um sobressalto. O bom senso só pode dar razão a Marta e coloca Jesus e Maria muito mal. Este sobressalto é preciso para sacudir uma leitura rotineira. Jesus fez uma revolução na situação social e religiosa da mulher. Marta significa o conformismo, sempre assim foi, sempre assim será. Existem para estar ao serviço do homem. Maria simboliza a igualdade do homem e da mulher: conversam sobre a vida de igual para igual. Como ainda hoje a revolução de Jesus não foi entendida, continua a conversa sobre a ordenação das mulheres e o seu acesso à presidência da celebração eucarística. Quando esquecemos o principal, o cerne da questão, perdemo-nos em labirintos sem saída.
Enquanto andarmos cegos à procura do argueiro, não nos poderemos dar conta da trave que nos cega[2].

3. Neste Domingo, os discípulos pedem ao Mestre que resolva a sua situação de inferioridade em relação aos outros grupos religiosos que têm métodos de oração[3] e eles, nada. João Baptista, por exemplo, tinha uma escola de oração para os seus seguidores. Jesus isola-se para rezar e deixa os discípulos sem livro de orações.
No Evangelho de Mateus[4], Jesus faz uma crítica severa daqueles que rezam para mostrar que rezam. Não quer que os seus discípulos façam parte da igreja dos exibicionistas da religião. Prefere que se fechem no quarto. Se Deus está em toda a parte, pode-se rezar e meditar em qualquer lugar. Vai mais longe: nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que tendes necessidades mesmo antes de lho pedirdes.
Como dissemos, Jesus não oferece um livro de orações aos seus discípulos. O Pai Nosso é, como em S. Mateus, um resumo do Evangelho e dos seus grandes temas. Diz-se depressa. A questão é de o tornar vida da nossa vida.
A narrativa de S. Lucas é muito astuciosa e, por isso, importa colher a sua lição paradoxal. Até parece que é preciso insistir, como se Deus fosse um distraído.
Conta uma história, verosímil, uma história de alguém em extrema necessidade que o leva, por causa de um amigo, a incomodar todos os amigos, que satisfazem o seu pedido só para se verem livres da sua insistência inoportuna. O certo é que conseguiu o que desejava. A conclusão até parece ser esta: pedi e dar-se-vos-á, procurai e encontrareis, batei à porta e abrir-se-vos-á. Porque quem pede recebe; quem procura encontra; e a quem bata à porta, esta abrir-se-vos-á. Se fosse esta a conclusão estaria a falar de deus que precisa de gente carente, doente, submissa e disposta a tudo para ser atendida. Um deus assim precisa da miséria do mundo para se afirmar.
A verdadeira conclusão é um salto: se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem. Isto é: a oração só tem sentido para nos abrir ao Espírito do Evangelho. O que importa, em todo o tempo e lugar, são pessoas apaixonadas por aquilo que conduziu e apaixonou a vida de Cristo. Torna-se nosso contemporâneo se acolhermos o Espírito que o anima. A oração é essencial, não para convencer a Deus, não para o converter aos nossos projectos. Somos nós que andamos distraídos e muito enganados acerca do sentido da vida, que precisamos, com insistência, de rezar pela nossa conversão. Meditemos nisto em qualquer tempo e lugar.
Boas férias e até Setembro.

Frei Bento Domingues, O.P., no PÚBLICO 

[1] Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2012
[2] Mt 7, 3-5; 23, 24; Lc 6, 41-42
[3] Lc 11, 1-13;
[4] Mt 6, 5-13

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