Texto de Sara Reis da Silva
Além de uma vida familiar intensa entregaram-se ambas à escrita, a uma escrita singular, dedicada, apurada, harmoniosa e reveladora de uma atenção ao outro, de uma sensibilidade muito pessoal.
Sara Reis da Silva |
Além de uma vida familiar intensa entregaram-se ambas à escrita, a uma escrita singular, dedicada, apurada, harmoniosa e reveladora de uma atenção ao outro, de uma sensibilidade muito pessoal.
Em boa hora e muito por acaso, encontrei-me com a obra Femmes oubliées dans les arts el les lettres au Portugal (XIXe-XXe siècles) (Indigo & Côté-Femmes éditions, 2016), coordenada por Maria Graciete Besse e Maria Araújo da Silva, volume decorrente do Colóquio Internacional homónimo, realizado em Outubro de 2016, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris IV) e na Fundação Calouste Gulbenkian-Paris. Em boa hora, sublinho, pela variedade de olhares aí oferecidos, pelos nomes aí evocados, pelas memórias (contra o esquecimento) que aí se registam e pelas reflexões que, a partir das abordagens coligidas, pude encetar e, pouco a pouco, expandir.
2019 é ano de recordar, de acordar a memória, de homenagear e voltar a ler a obra de duas autoras que, por razões distintas, não foram contempladas nos estudos compilados no volume referido: Sophia de Mello Breyner Andresen (2019–2004) e Maria Cecília Correia (1919-1993). Naturalmente e para contento geral, Sophia, escritora distinguida, por exemplo, em 1992, pelo conjunto da sua obra, com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças e, em 1999, com o Prémio Camões, não é uma das “femmes oubliées”. O mesmo, porém, não sucede com Maria Cecília Correia.
Nascidas em 1919, Sophia e Maria Cecília têm percursos de vida e traços literários algo próximos. Além de uma vida familiar intensa, acompanhando sempre os seus maridos (no caso de Maria Cecília, vivendo até um período em África) e os seus filhos (Sophia foi mãe de cinco filhos e Maria Cecília de seis), entregaram-se ambas à escrita, a uma escrita singular, dedicada, apurada, harmoniosa e reveladora de uma atenção ao outro, de uma sensibilidade muito pessoal.
A produção literária de Sophia, bem difundida, integra poesia, texto dramático e contos para a infância, lidos, há várias décadas, em contexto escolar. Este conjunto de narrativas breves foi inaugurado em 1958 com os títulos A Menina do Mar e A Fada Oriana.
Maria Cecília Correia, galardoada com o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho por Histórias da Minha Rua (1953), é autora de uma obra menos extensa e especialmente centrada na literatura de potencial recepção infantil, composta por três volumes de contos - Histórias da Minha Rua, Histórias de Pretos e de Brancos (1960) e Histórias do Ribeiro (1974) -, dois contos publicados autonomamente - O Coelho Nicolau (1974) e O Besouro Amarelo (1977) -, um álbum poético - Amor Perfeito (1975) - e dois livros patentes na «Colecção Caracol» (Plátano Editora) intitulados Bom dia (1977) e Manhã no Jardim (1982).
Além de ambas terem inaugurado a sua obra ainda durante o Estado Novo e de terem escrito para leitores adultos – recorde-se que Maria Cecília publicou Pretérito Presente (1976) e Presença Viva (1987) – e para leitores infantis, não deixa de ser, igualmente, curioso que as duas tenham títulos seus ilustrados pela também inesquecível Maria Keil (1914-2012): A Noite de Natal, de Sophia e Histórias da Minha Rua e Histórias de Pretos e de Brancos, de Maria Cecília.
Aproximam, ainda, as escritoras em pauta as relações de amizade e de cumplicidade intelectual que mantiveram com outras importantes personalidades da cultura portuguesa (e não apenas). Sophia correspondeu-se longamente com Jorge de Sena (1919-1978), por exemplo, um acervo epistolográfico (1959-1978) já publicado; Maria Cecília, por seu turno, com Armando Cortês-Rodrigues (1891-1971), Agostinho da Silva (1906-1994) e Cecília Meireles (1901-1964), entre outros, cartas infelizmente ainda inéditas.
É muito dissemelhante, todavia, a recepção da produção literária de Sophia e de Maria Cecília. Ao passo que, no caso da autora de O Cavaleiro da Dinamarca (1964), se têm sucedido as reedições da sua obra, no que diz respeito à autora de Histórias da Minha Casa (1976), os seus títulos são difíceis de encontrar ou encontram-se apenas disponíveis em bibliotecas.
Resta-me o conforto de saber que, a par das relevantes iniciativas que, ao longo do ano, se têm centrado/centrarão em Sophia de Mello Breyner (uma das últimas na Escola Superior de Educação do Porto), também Maria Cecília Correia será recordada, em Julho, no âmbito de uma exposição biográfica no Instituto Camões, em Lisboa, e num Encontro de Literatura para a Infância, promovido pela Câmara Municipal de Aveiro, além de um outro, em Novembro, que decorrerá na Biblioteca Nacional de Portugal, uma iniciativa promovida por alguns dos seus familiares que, com dedicação e de braço dado com Mnemosine, muito têm feito para não deixar cair no esquecimento a obra desta autora cuja presença e significado na História da Literatura Portuguesa para a Infância é indiscutível, como, aliás, disso deram conta, nos seus estudos, Natércia Rocha ou José António Gomes.
Para terminar, e pondo de lado as proximidades e as distâncias entre as duas autoras, tenho para mim uma convicção: num país onde, com assiduidade, se confunde leitura literária de qualidade com outras leituras paraliterárias ou, mesmo, não literárias, lamentavelmente colocadas lado a lado, importa ler, reler e dar a ler as obras memoráveis de Sophia e de Maria Cecília, na certeza de que, no convívio com a escrita delicada e humana de ambas, com os seus textos distintos, reconhecidas e admiráveis manifestações estéticas, formar-se-ão leitores literariamente educados.
Sara Reis da Silva
Texto publicado no PÚBLICO
Por vontade expressa da sua autora, este texto encontra-se escrito segundo a norma ortográfica da Língua Portuguesa anterior ao Novo Acordo Ortográfico.
Professora Auxiliar, Instituto de Educação da Universidade do Minho
NOTA: Foto dos meus arquivos