segunda-feira, 6 de maio de 2019

Bento Domingues — Os crismados responsáveis pelo futuro



"Sem empenhamento em fazer acontecer, na sociedade, 
o que celebramos, caímos no ritualismo"

1. As hierarquias eclesiásticas são muito tentadas a criar charadas para os párocos e os teólogos resolverem. O Crisma passou a ser exigido para se ser padrinho ou madrinha de outros sacramentos. Esta norma coincidiu com a progressiva falta de cristãos para satisfazer essas condições. Foi, então, decidido antecipar a idade para receber esse sacramento. Pior a emenda que o soneto. O Crisma passou a inscrever-se no fenómeno a que o Papa Francisco chamou a debandada da juventude, depois da catequese e da comunhão solene. Estamos sempre a ouvir esta observação: sou baptizado, fiz todas as comunhões, até sou crismado, mas isso já foi há muito tempo.
Não tem de ser assim. Um catolicismo iniciático deve ter várias etapas, desde o nascimento à Santa Unção. O Crisma, no Ocidente, deveria ser entendido como o Sacramento da responsabilidade pelo futuro da própria vida, da sociedade e da Igreja. Neste sentido, a idade mais aconselhável seria a do momento em que os jovens se preparam para tomar a sua vida nas próprias mãos, seja qual for o itinerário da sua escolha. O modelo é o do próprio Jesus. Foi depois de ter recebido o Espírito Santo que apresentou o programa da sua intervenção pública, um programa carregado de dimensões sociais e políticas: o Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu (crismou) e enviou para evangelizar os pobres; para libertar os presos e os oprimidos, para dar vista aos cegos, e para proclamar um ano de graça do Senhor [1], isto é, um Jubileu!

2. Seja qual for o país ou o continente, o cristão deve assumir uma visão católica, isto é universal, dos problemas da sociedade e da Igreja. Em que mundo e para que mundo sou eu crismado?
Deixo aqui algumas indicações do que deveria ser o olhar transformador de um crismado, transformador de uma realidade inaceitável, escandalosa. Perdoem-me os números do absurdo.
O custo humano da desigualdade é devastador. Num dia como o de hoje, 262 milhões de crianças não podem ir à escola; quase 10.000 pessoas morrerão por falta de acesso a serviços de saúde; 16,4 mil milhões de horas serão trabalhadas em actividades de cuidado não remunerado, a maioria por mulheres pobres.
Hoje em dia, os governos enfrentam uma escolha: uma vida digna para todos os seus cidadãos ou riqueza extrema para muito poucos.
A crise financeira que abalou o nosso mundo em 2007-08, causando enorme sofrimento, já tem mais de dez anos. Nesse tempo, as fortunas dos mais ricos aumentaram desmesuradamente: nestes mais de dez anos, desde a crise financeira, o número de bilionários, cuja fortuna ultrapassa os mil milhões de dólares, quase duplicou.
Só no ano passado a riqueza dos bilionários do mundo aumentou 900 mil milhões de dólares, ou seja, 2,5 mil milhões por dia. Ao mesmo tempo, a riqueza da metade mais pobre da humanidade, 3,8 mil milhões de pessoas, caiu 11%.
Actualmente, os bilionários têm mais riqueza do que nunca. Entre 2017 e 2018, de dois em dois dias, surgiu um novo bilionário. A riqueza está a tornar-se mais concentrada: 26 indivíduos possuem a mesma riqueza dos 3,8 mil milhões de pessoas que compõem a metade mais pobre da humanidade, o que significa uma concentração muito mais acentuada, se compararmos com as 43 pessoas do ano passado.
O homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, dono da Amazon, viu aumentar a sua fortuna para 112 mil milhões de dólares. Apenas 1% dessa riqueza equivale a todo o orçamento anual de saúde da Etiópia, um país de 105 milhões de habitantes.
Se todo o trabalho não remunerado realizado no mundo por mulheres fosse feito por uma única empresa, esta teria uma facturação de dez biliões de dólares, ou seja, 43 vezes a da Apple.
As grandes fortunas em expansão, os mais ricos dos mais ricos, e as empresas que eles possuem, pagam, há décadas, o menor nível de impostos possível.
Os governos devem concentrar os seus esforços em exigir mais dos muito ricos, para ajudar a combater a desigualdade. Se, por exemplo, fizer com que o 1% dos mais ricos pague apenas mais 0,5% sobre a sua riqueza, isso iria gerar mais dinheiro do que o custo de educar os 262 milhões de crianças que estão fora da escola e fornecer serviços de saúde que salvaria as vidas de 3,3 milhões de pessoas.
Os super ricos escondem 7,6 biliões do fisco. As empresas também escondem enormes quantias no exterior. Juntos, privam os países em desenvolvimento de 170 mil milhões de dólares [2].

3. A lógica destes números alimenta-se da criação de consumidores aos quais só interessa aumentar indefinidamente o seu poder de compra e que olham, com desconfiança, para qualquer realidade que possa ameaçar o seu nível de consumo real ou desejado. Em vez de consumidores, o mundo de hoje precisa de cidadãos e os cristãos, por exigência da sua fé, são antes de mais chamados a ser cidadãos, membros de uma comunidade política organizada a vários níveis - local, nacional, regional, internacional - onde a sorte da maioria da população do mundo esteja no centro das atenções, tal como acontece no Evangelho. Quando se olha, a partir da Europa, o que achamos que é normal na vida, não é infelizmente nada normal para a maioria das pessoas que hoje habita a Terra.
Um sacramento só tem sentido como símbolo de mudança. Não actua de forma automática.
O crisma implica uma vontade e um programa de orientação da vida em todas as suas dimensões, sociais, económicas, políticas e eclesiais. É o desejo de marcar a vida toda, em todos os aspectos, pela lógica do Evangelho: trazer para o centro das atenções e preocupações as periferias abandonadas. Não basta ao crismado ser competente no ramo da sua actividade. Sem uma forte preocupação pelo bem comum, pela atenção aos mais desfavorecidos, pode ser um bom profissional, mas não é um cristão. Tem de olhar para o conjunto da sociedade
Dizer que os sacramentos realizam o que significam, se não encontrarem obstáculos, é demasiado curto.
Sem empenhamento em fazer acontecer, na sociedade, o que celebramos, caímos no ritualismo.

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO

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