"Sem empenhamento em fazer acontecer, na sociedade,
o que celebramos, caímos no ritualismo"
1. As hierarquias eclesiásticas são muito tentadas a criar
charadas para os párocos e os teólogos resolverem. O Crisma passou a ser
exigido para se ser padrinho ou madrinha de outros sacramentos. Esta norma
coincidiu com a progressiva falta de cristãos para satisfazer essas condições.
Foi, então, decidido antecipar a idade para receber esse sacramento. Pior a
emenda que o soneto. O Crisma passou a inscrever-se no fenómeno a que o Papa
Francisco chamou a debandada da juventude, depois da catequese e da comunhão
solene. Estamos sempre a ouvir esta observação: sou baptizado, fiz todas as
comunhões, até sou crismado, mas isso já foi há muito tempo.
Não tem de ser assim. Um catolicismo iniciático deve ter
várias etapas, desde o nascimento à Santa Unção. O Crisma, no Ocidente, deveria
ser entendido como o Sacramento da responsabilidade pelo futuro da própria
vida, da sociedade e da Igreja. Neste sentido, a idade mais aconselhável seria
a do momento em que os jovens se preparam para tomar a sua vida nas próprias
mãos, seja qual for o itinerário da sua escolha. O modelo é o do próprio Jesus.
Foi depois de ter recebido o Espírito Santo que apresentou o programa da sua
intervenção pública, um programa carregado de dimensões sociais e políticas: o
Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu (crismou) e enviou para
evangelizar os pobres; para libertar os presos e os oprimidos, para dar vista
aos cegos, e para proclamar um ano de graça do Senhor [1], isto é, um Jubileu!
2. Seja qual for o país ou o continente, o cristão deve
assumir uma visão católica, isto é universal, dos problemas da sociedade e da
Igreja. Em que mundo e para que mundo sou eu crismado?
Deixo aqui algumas indicações do que deveria ser o olhar
transformador de um crismado, transformador de uma realidade inaceitável,
escandalosa. Perdoem-me os números do absurdo.
O custo humano da desigualdade é devastador. Num dia como o
de hoje, 262 milhões de crianças não podem ir à escola; quase 10.000 pessoas
morrerão por falta de acesso a serviços de saúde; 16,4 mil milhões de horas
serão trabalhadas em actividades de cuidado não remunerado, a maioria por
mulheres pobres.
Hoje em dia, os governos enfrentam uma escolha: uma vida
digna para todos os seus cidadãos ou riqueza extrema para muito poucos.
A crise financeira que abalou o nosso mundo em 2007-08,
causando enorme sofrimento, já tem mais de dez anos. Nesse tempo, as fortunas
dos mais ricos aumentaram desmesuradamente: nestes mais de dez anos, desde a
crise financeira, o número de bilionários, cuja fortuna ultrapassa os mil
milhões de dólares, quase duplicou.
Só no ano passado a riqueza dos bilionários do mundo
aumentou 900 mil milhões de dólares, ou seja, 2,5 mil milhões por dia. Ao mesmo
tempo, a riqueza da metade mais pobre da humanidade, 3,8 mil milhões de
pessoas, caiu 11%.
Actualmente, os bilionários têm mais riqueza do que nunca.
Entre 2017 e 2018, de dois em dois dias, surgiu um novo bilionário. A riqueza
está a tornar-se mais concentrada: 26 indivíduos possuem a mesma riqueza dos
3,8 mil milhões de pessoas que compõem a metade mais pobre da humanidade, o que
significa uma concentração muito mais acentuada, se compararmos com as 43
pessoas do ano passado.
O homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, dono da Amazon, viu
aumentar a sua fortuna para 112 mil milhões de dólares. Apenas 1% dessa riqueza
equivale a todo o orçamento anual de saúde da Etiópia, um país de 105 milhões
de habitantes.
Se todo o trabalho não remunerado realizado no mundo por
mulheres fosse feito por uma única empresa, esta teria uma facturação de dez
biliões de dólares, ou seja, 43 vezes a da Apple.
As grandes fortunas em expansão, os mais ricos dos mais
ricos, e as empresas que eles possuem, pagam, há décadas, o menor nível de impostos
possível.
Os governos devem concentrar os seus esforços em exigir mais
dos muito ricos, para ajudar a combater a desigualdade. Se, por exemplo, fizer
com que o 1% dos mais ricos pague apenas mais 0,5% sobre a sua riqueza, isso
iria gerar mais dinheiro do que o custo de educar os 262 milhões de crianças
que estão fora da escola e fornecer serviços de saúde que salvaria as vidas de
3,3 milhões de pessoas.
Os super ricos escondem 7,6 biliões do fisco. As empresas também
escondem enormes quantias no exterior. Juntos, privam os países em
desenvolvimento de 170 mil milhões de dólares [2].
3. A lógica destes números alimenta-se da criação de
consumidores aos quais só interessa aumentar indefinidamente o seu poder de
compra e que olham, com desconfiança, para qualquer realidade que possa ameaçar
o seu nível de consumo real ou desejado. Em vez de consumidores, o mundo de
hoje precisa de cidadãos e os cristãos, por exigência da sua fé, são antes de
mais chamados a ser cidadãos, membros de uma comunidade política organizada a
vários níveis - local, nacional, regional, internacional - onde a sorte da
maioria da população do mundo esteja no centro das atenções, tal como acontece
no Evangelho. Quando se olha, a partir da Europa, o que achamos que é normal na
vida, não é infelizmente nada normal para a maioria das pessoas que hoje habita
a Terra.
Um sacramento só tem sentido como símbolo de mudança. Não
actua de forma automática.
O crisma implica uma vontade e um programa de orientação da
vida em todas as suas dimensões, sociais, económicas, políticas e eclesiais. É
o desejo de marcar a vida toda, em todos os aspectos, pela lógica do Evangelho:
trazer para o centro das atenções e preocupações as periferias abandonadas. Não
basta ao crismado ser competente no ramo da sua actividade. Sem uma forte
preocupação pelo bem comum, pela atenção aos mais desfavorecidos, pode ser um
bom profissional, mas não é um cristão. Tem de olhar para o conjunto da
sociedade
Dizer que os sacramentos realizam o que significam, se não
encontrarem obstáculos, é demasiado curto.
Sem empenhamento em fazer acontecer, na sociedade, o que
celebramos, caímos no ritualismo.
Frei Bento Domingues, no PÚBLICO