"O Evangelho é a proclamação do amor
com que somos amados"
Jesus regressa a casa, após a sua primeira viagem missionária na Galileia. Fora uma experiência rica, de que se destaca a visita a aldeias e o encontro sanador com pessoas, o baptismo no rio Jordão e a permanência no deserto, onde se debate com tentações diabólicas que “atingem” as suas opções para realizar a missão de que se sentia portador. A reacção popular fora muito positiva. O seu nome torna-se conhecido e a fama apreciada. “Era elogiado por todos”. Jesus volta da Galileia, com a força do Espírito, que se havia manifestado no seu baptismo.
Lucas, o autor do relato, não nos deixa referências à partilha de episódios e de vivências com a família. Quer centrar a narração na ida à sinagoga de Nazaré, evitando essas curiosidades. Por isso refere a abrir a cena: “Segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado e levantou-se para fazer a leitura”. Vamos seguir o desenrolar da celebração protagonizada por Jesus, detendo-nos em pontos-chave para a nossa participação litúrgica.
As leituras de hoje trazem-nos à memória com grande vigor e clareza a realidade admirável da assembleia do povo reunido para celebrar a fé e viver a missão. A primeira relata a que se realizou no tempo de Esdras e Neemias, em Jerusalém, no largo em frente da Porta das Águas, cinco séculos antes da nossa era; a segunda é de uma beleza rara e descreve o que é a Igreja, visualizando a função de cada de nós e recorrendo à composição do corpo humano. “Assim como o corpo é um só e tem muitos membros e todos os membros do corpo, apesar de numerosos, constituem um só corpo, assim também sucede em Cristo”. E São Paulo exorta os cristãos a que reconheçam os dons recebidos e os coloquem ao serviço de Deus na comunidade e nos espaços onde vivem.
Na sinagoga de Nazaré, realiza-se a celebração semanal observando o rito tradicional dos judeus. Não se improvisa. Nem cada pessoa se entrega à sua devoção. Nem escolhe a posição do corpo ou das mãos. Podendo, claro, as posturas são comuns e desvendam a realidade profunda de quem está reunido: o povo de Deus, a assembleia convocada para escutar a Palavra do Senhor, (e não as divagações próprias ou as distrações alheias), a igreja santa que experimenta na vida o pecado dos seus membros (e por isso pede perdão em público), mas confia na graça que a santifica. Povo que capta o sentido do que é lido, entende, reage com entusiasmo, emociona-se. Na assembleia de Jerusalém: “Todo o povo respondeu, erguendo as mãos: Ámen! Ámen!” E faz outros gestos apropriados. Na de Nazaré, fixa os olhos em Jesus pendente do que lhes vai dizer, deixa-se encantar pela beleza do texto, que já conhece pois consta da livro do profeta Isaías, e aguarda a homilia. Pressente que algo novo pode ser anunciado. Jesus havia silenciado, a passagem que se refere ao castigo de Deus aos pecadores e à vingança divina aos malvados. O que estaria para surgir?!
A notícia dá-se em poucas palavras. Não se refere a Deus nem ao seu proceder. E soam as palavras há tanto aguardadas: “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”. O hoje de Jesus coincide com o hoje de Deus Pai e condensa a história humana em processo de realização. E, continuamente, ressoa aos ouvidos do povo convocado desde a libertação do Egipto: “Quem dera ouvísseis hoje a sua voz: «Não endureçais os vossos corações…»”. Este apelo revigora-se com os profetas e sobretudo com Jesus que se despede da sua missão terrena garantindo ao companheiro de suplício: “Hoje estarás comigo no paraíso”. E ressoa jubiloso na ressurreição: “Tu és Meu Filho. Hoje Te gerei”. (Heb 5, 5).
Este apelo aviva-se especialmente em cada celebração da Palavra e, de modo especial, na Eucaristia. Apelo que tem de chegar de forma clara e audível, suave e atraente, “que dê gosto ouvir” para encontrar eco no coração e despertar a consciência; para fazer brotar a resposta agradecida de cada pessoa da assembleia. Que missão admirável está confiada, sobretudo aos leitores. E que responsabilidade! Em grande parte, a sorte da Palavra de Deus está nas nossas mãos. Corremos o risco de a bloquear por falta de habilitação específica para o desempenho da função, de sentido da frase e da pronúncia de cada palavra, das pausas a observar e interrogações a fazer. Que bom seria termos o povo cristão a sentir-se feliz como em Jerusalém e em Nazaré!
Bento Domingues, no Jornal Público de 20.01.2019, adverte criticamente para esta situação. “Não se pode continuar a dizer solenemente: meus irmãos, estamos aqui para celebrar a grande festa da nossa fé, e, depois, inaugurar apenas uma grande seca. Textos, muitas vezes belos, que morrem ao ser mal lidos, cânticos sem alcance musical envolvente, pessoas sem corpo, estacas que se movimentam apenas para estender a mão em sinal de paz e para receberem a hóstia santa”. E o frade dominicano insiste na necessidade de renovar criativamente a celebração para ser como um grande acontecimento de relançamento da esperança activa. Insistência que deve merecer a revisão das nossas atitudes e das nossas celebrações dominicais.
A narração das assembleias que comentamos realça a dignidade de livro, do móvel de suporte e exposição, do espaço onde se faz a proclamação e do seu enquadramento no conjunto litúrgico. Tudo a convergir para centrar a atenção dos fiéis na Palavra a ser proclamada no ambão e na Eucaristia a ser celebrada no altar. A Igreja reconhece no seu magistério litúrgico a importância da assembleia participar, entender, viver e, a seu modo, celebrar com o presidente esta grande maravilha: Deus fala ao seu Povo. Jesus, a Palavra, oferece-se como alimento.
O Papa Francisco apresenta Maria, a Mãe de Jesus, como modelo de quem escuta a Palavra e é coerente. Dirige uma calorosa mensagem aos Jovens na preparação da Jornada Mundial que, hoje, se encerra no Panamá. Diz ele: “A Jornada Mundial da Juventude terá como tema a resposta da Virgem Maria à chamada de Deus: «Eis a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua Palavra». As suas palavras são um «sim» audaz e generoso; o sim de quem compreendeu o segredo da vocação: sair de si mesmo e pôr-se ao serviço dos outros. A nossa vida só encontra sentido no serviço a Deus e ao próximo”. O Papa abre horizontes de realização a esta vocação fundamental de todos, sobretudo dos Jovens.
Lucas redige o seu livro do Evangelho, a partir de fontes seguras e credíveis. E oferece-o a Teófilo, seu amigo “para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado”- Teófilo significa “amado por Deus”. O nome desta figura é para nós uma revelação: O Evangelho é a proclamação do amor com que somos amados. E nós, reconhecidos, entramos nesse dinamismo de amor, fixando em Jesus o olhar do nosso coração.
Georgino Rocha