Bento Domingues |
O Pai Nosso exprime o mundo por que Jesus lutou.
Nada acontece de forma mágica.
1. Dizem-me
que ando distraído das estatísticas das religiões que, na Europa,
manifestam um inquietante declínio. O cristianismo não revela qualquer
estratégia adequada para inverter essa situação. A laicidade do Estado, mal
entendida, teria conduzido a sociedade para os braços do maior adversário da fé
cristã: a indiferença.
O Islão
aposta nesse vazio. Estaria, ao que parece, cada vez mais dominado pelas
correntes e organizações islamitas, que, a bem ou a mal, pretendem ser a
religião europeia do futuro.
Por outro
lado, invocar o nome de Deus em vão era considerado um pecado grave. Acaba de
sagrar a tomada de posse do Presidente do Brasil. As chamadas “igrejas
evangélicas” têm abundantes passagens do Antigo Testamento para apoiar a sua
retórica banhada de propósitos guerreiros.
À primeira
vista, violência e religião nunca deveriam poder andar associadas. A história
mostrou e mostra que, por diversas loucuras, andaram e andam muito juntas.
A religião
é, por natureza, a dilatação transcendente do ser humano. Mas também pode ser
entendida como um mecanismo de autoprotecção. Um indivíduo ou um grupo
sentem-se mais seguros se alguém superior – uma divindade, por exemplo – os
proteger em todas as dimensões da vida: espirituais e materiais. Nesse sentido,
defender a sua religião é defender todos os seus interesses. Quem a puser em
causa ameaça toda a sua vida. Daí nasce o elo entre violência e religião:
defender-se do inimigo. A melhor defesa é destruí-lo. Procura, por esse
caminho, salvar a própria identidade. É uma explicação simples para a história
da violência ligada ao fenómeno religioso e às suas expressões. Nessa
perspectiva, a salvação de uns é a perda dos outros.
Não é
inevitável que assim seja. A tolerância não é um desprezo pelas convicções de
cada pessoa ou grupo. É a atitude de quem reconhece que não é dono da verdade,
mas apenas um seu peregrino. Para erradicar as ligações entre religião e
violência, o melhor é a promoção da liberdade religiosa para todos, menos para
aquelas actividades que a procuram destruir.
Quem deseja
a liberdade religiosa não é um apóstolo da indiferença perante os valores.
Reconhecer o direito a ser ou não ser religioso é um apelo à seriedade na busca
livre do sentido da vida.
Procurar a
verdade e testemunhar essa busca não tem nada a ver com a violência. Testemunha
algo que é essencial à vida: nunca se acomodar aos passos já dados. O infinito
não tem limites.
2. A oração é
uma atitude comum a todas as religiões. A qualidade da oração diz muito acerca
da natureza de uma determinada religião. Se à crença numa divindade está ligado
o prémio e o castigo, tem de negociar com ela. Tem de evitar a sua ofensa e
pedir perdão pelo pecado cometido. É uma transposição para o sagrado do que se
passa nas relações humanas de inferior para superior. Em caso de muita
incerteza, importa contar com bons intermediários. Como se diz, quem tem amigos
não morre na cadeia.
Não vou
apresentar uma tipologia de todas as formas de oração nas diferentes religiões
ou das atitudes espontâneas de cada pessoa perante o mistério da história
pessoal e do mundo.
No plano
cristão, a oração mais prestigiada e mais comentada é o Pai-Nosso.
Costuma dizer-se que é a própria síntese do Evangelho de Cristo. Até está
escrito que foi Ele que pediu para se rezar assim.
Recomendo a
consulta da tradução e das notas de Frederico Lourenço aos textos de Mateus e
Lucas [1].
O Papa
Francisco, na 2.ª catequese sobre o Pai Nosso [2], no seu inconfundível
estilo, diz o mais importante: "Jesus põe nos lábios dos seus discípulos
uma prece breve, audaz, formada por sete pedidos, um número que na Bíblia não é
casual, indica plenitude. Digo audaz, porque se Cristo não a tivesse sugerido,
provavelmente nenhum de nós — aliás, nenhum dos teólogos mais famosos — ousaria
rezar a Deus desta maneira."
"Com
efeito, Jesus convida os seus discípulos a aproximarem-se de Deus e a
confidenciar-lhe alguns pedidos: antes de tudo em relação a Ele e depois em
relação a nós. Não há prefácios no Pai Nosso. Jesus não ensina fórmulas
para adular o Senhor, aliás, convida a pedir-lhe abatendo as barreiras
da reverência e do medo. Não diz para se dirigir a Deus chamando-lhe Omnipotente,
Altíssimo, Tu, que estás tão distante de nós, eu sou miserável:
não, não diz assim, mas simplesmente Pai, com toda a simplicidade, como
as crianças se dirigem ao pai. E esta palavra Pai, expressa a
confidência e a confiança filial."
3. O que
talvez se esqueça, nos comentários ao Pai Nosso, é a raiz do contencioso
de Jesus com a sua família de Nazaré, com a família dos discípulos e com o
facto de ele nunca ter constituído uma família pessoal [3]. Procurou fazer
família com quem não era da família. Daí o escândalo que provocou.
O Pai
Nosso exprime o mundo por que lutou e a missão que deixou aos discípulos, a
missão que nos cabe. Nada acontece de forma mágica. É uma forma de viver e de
intervir em relação ao que ainda falta, ao advento do Reino de Deus no mundo.
Dizer o Pai
Nosso e julgar que as pessoas passam, automaticamente, a considerarem-se como
irmãs não seria milagre, mas um exercício ilusionista.
O Pai-Nosso
é um programa de missão para a Igreja e para todos os que trabalham por uma
humanidade una, com os mesmos direitos. Por não se encarnar o Pai-Nosso como
uma missão do dia-a-dia, semana-a-semana, ano-a-ano, uma ousadia pode tornar-se
banalidade verbal.
Foi o que o
Papa Francisco afirmou na quarta-feira passada: "Quantas vezes vemos o
escândalo dessas pessoas que passam o dia na igreja, ou que lá vão todos os dias,
e depois vivem a odiar ou a falar mal dos outros." Nesse caso, “o melhor é
nem ir à igreja”. "Se vais à igreja, então vive como filho, como irmão, dá
um verdadeiro exemplo." Os hipócritas rezam "para serem vistos pelas
pessoas". "Os pagãos acreditam que se reza a falar, a falar, a falar.
Eu penso em muitos cristãos que acreditam que rezar é falar com Deus, salvo
seja, como um papagaio. Não! Rezar faz-se com o coração, a partir do
interior."
Começamos um
novo ano. Os interesses dos cristãos de todo o mundo, para além do que as
ciências, as técnicas, a economia, as políticas e as criações artísticas
prometem, não podem esquecer a alma de tudo espelhada na oração que o Senhor
nos deixou. Um programa de vida a inventar como o pão nosso de cada dia.
Frei Bento
Domingues no PÚBLICO
[1] Mt
6, 5-15; Lc 11, 2-4. Ver também Xavier Léon-Dufour, Dictionnaire du Nouveau
Testament, na entrada père.
[2] Audiência de 12.12.2018
[3] Já tentei explicitar, noutros textos, esta questão.
[2] Audiência de 12.12.2018
[3] Já tentei explicitar, noutros textos, esta questão.