domingo, 27 de janeiro de 2019

Francisco de Assis e o Sultão Al-Kamil

Anselmo Borges
«A religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.»


1. Não há dúvida nenhuma de que o cristianismo é actualmente a religião mais perseguida no mundo. Há bastante tempo que se vai concretizando o que parece ser um plano para acabar com a presença dos cristãos no Médio Oriente. Quase desapareceram da Palestina e vão-se extinguindo na Síria e no Iraque e mais lentamente no Egipto e no Líbano. Se em 1950 os cristãos na Palestina representavam à volta de 15 por cento da população, actualmente serão uns 2 por cento. 
O relatório da Open Doors (Portas Abertas), com a Lista Mundial da Perseguição referente ao ano de 2018, é dramático, pois a perseguição aos cristãos no mundo continua a crescer. Só na lista dos primeiros 50 países onde os cristãos vêem os seus direitos mais limitados pelo facto de serem cristãos, o seu número eleva-se a 245 milhões, cifra que deve ser muito maior, já que pelo menos em 73 países do mundo os níveis de perseguição são “altos”, “muito altos” ou “extremos”: entre Novembro de 2017 e Outubro de 2018, 3731 cristãos foram mortos por causa de seguirem Jesus e 1847 igrejas foram atacadas. 
A Ásia e a África são os continentes mais hostis aos cristãos. Um em cada nove cristãos sofre perseguição em todo o mundo; na Ásia, um em cada três e na África, um em cada seis. Na Lista da Perseguição Mundial, os três primeiros lugares são ocupados pela Coreia do Norte (há 17 anos que ocupa o primeiro lugar), pelo Afeganistão e pela Somália, respectivamente. A Nigéria, onde houve cerca de 2000 cristãos mortos por causa da sua fé, ocupa o décimo quarto lugar da lista dos 50 países com maior perseguição. O Paquistão é considerado o país onde a violência anticristã atinge o seu nível máximo. Causa preocupação o que se passa na Índia por causa do radicalismo hindu e na China sobretudo por causa da posição do Partido Comunista em relação à religião. As novidades na Lista dos 50 países são o Nepal e o Azerbaijão. A situação na Líbia, que ocupa a sétima posição na escala, causa particular preocupação. Com a retirada do autoproclamado Estado Islâmico, os níveis de perseguição no Iraque e na Síria desceram, embora continuem a ocupar lugares muitos altos na Lista: oitavo e décimo quinto lugares, respectivamente. 
Entretanto, na Europa impõe-se frequentemente um “secularismo agressivo”, e, com honrosas excepções, para a França e o Reino Unido, é gritante o clamoroso silêncio do Ocidente democrático face a esta situação. Perante o aumento dramático da perseguição dos cristãos no mundo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico impulsionou um Relatório sobre a situação, que será apresentado em Abril. “A perseguição dos cristãos é frequentemente um sinal explícito e alarmante da perseguição das minorias”, assegurou o Ministro Hunt, que reconheceu que “podemos e devemos fazer algo mais”. 
2. Neste ano de 2019, há, entre muitas outras, uma data altamente importante: em 1219, Francisco de Assis, em plena quinta cruzada, foi ao encontro do sultão do Egipto, o sultão Al-Kamil, faz este ano 800 anos. Recordando este acontecimento histórico, com a sua mensagem de tolerância, diálogo e compromisso com a paz, o arcebispo de Lahore, no Paquistão, também presidente da Comissão Nacional para o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo, da Conferência Episcopal do Paquistão, presidiu, no passado dia 12, a um encontro de cristãos e muçulmanos. Aí foi lembrado que Francisco e Al-Kamil “defenderam a paz e a tolerância no meio da atmosfera de guerra e conflito durante as cruzadas. Deram um exemplo de diálogo inter-religioso e de compreensão mútua”. 
É neste espírito que o Papa Francisco assumiu como um dos desafios do seu pontificado o compromisso com o diálogo inter-religioso, como mostrou a sua viagem ao Egipto e, imediatamente a seguir ao seu encontro com os jovens nas Jornadas Mundiais da Juventude, no Panamá, onde se encontra, vai deslocar-se à capital dos Estados Árabes Unidos, Abu Dhabi, de 3 a 5 de Fevereiro próximo, para participar num encontro inter-religioso sobre a “Fraternidade Humana”. E repete constantemente que quer visitar o Iraque, por onde em Dezembro passado andou o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, que celebrou o Natal com várias comunidades cristãs.
Evidentemente, o diálogo não pode ser unidireccional, tem de haver reciprocidade, sendo, por isso, razoável e legítimo esperar que concretamente os muçulmanos que vivem no Ocidente denunciem as atrocidades cometidas contra os cristãos nomeadamente nos países de maioria islâmica. O que alguns já fazem, felizmente. E a Turquia acaba de anunciar a construção da primeira igreja cristã desde 1923, a começar em Fevereiro. 
3. Neste contexto, seja-me permitido, mais uma vez, sublinhar as condições irrenunciáveis para um diálogo tão urgente como difícil, concretamente para o diálogo islâmico-cristão, que aqui tenho repetido. 
3. 1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng que tem razão: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial”. 
3. 2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais. 
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social, e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar, para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu. 
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica, dos Livros Sagrados, e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.

Anselmo Borges no Diário de Notícias

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