Anselmo Borges |
Na sua obsessão pelo sexo, a Igreja não pode reclamar-se de Jesus. De facto, segundo os Evangelhos, Jesus raramente falou de sexo e, quando o fez, foi provocado por perguntas que lhe fizeram. E, aí, apelou para o amor, a fidelidade no casal e a igualdade do homem e da mulher. Apaixonado pela felicidade das pessoas, participou em festas de casamento e até fez com que aparecesse o vinho que faltava: 600 litros! Ele próprio celibatário, não impôs o celibato: São Pedro, por exemplo, era casado, e o celibato obrigatório para os padres na Igreja do Ocidente só começou a impor-se no século XI, com o Papa Gregório VII.
O que envenenou a relação da Igreja com a sexualidade foi, essencialmente, a influência perniciosa da gnose, que, contra o cristianismo autêntico, desprezava a matéria e o corpo. Depois, Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e de uma exegese errada - ele seguiu a tradução latina de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12: Adão, "no qual" todos pecaram, quando o original grego diz "porque" todos pecaram --, formulou, como solução para o problema do mal, a doutrina do pecado original. E a questão é que esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados - todos os seres humanos são pecadores --, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no ato sexual. Finalmente, com a reforma gregoriana, foi-se erguendo a tríplice coluna sobre que assenta, segundo Hans Küng, o paradigma católico-romano: papismo (poder centrado no Papa), celibatismo (celibato obrigatório por lei para os padres), marianismo (devoção a Nossa Senhora como compensação).
Como se determinou que tudo o que se refere ao sexo é por princípio matéria grave e como, por outro lado, não há ninguém que não tenha pelo menos pensamentos relacionados com o sexo e só o sacerdote ou o bispo podem perdoar os pecados, a confissão acabou por tornar-se não um espaço de reconciliação e paz, mas tantas vezes de opressão, e raramente uma instituição acabou por deter tanto poder sobre as consciências, criando infindos complexos e fardos de culpabilização. Quando se lê os manuais dos confessores e todos aqueles interrogatórios inquisitoriais, quase reduzidos ao campo sexual, percebe-se que muitos tenham começado a abandonar a Igreja por causa da confissão, que consideravam ofensiva dos direitos humanos.
No universo sexual, que, como escreve Miguel Oliveira da Silva, continua a ser "um imenso, incómodo e multifacetado mistério", vale tudo? É claro que não, reconhecendo o catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que "a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça pública e passível de excessos não consegue minimamente preencher - ao contrário". Chegou-se à degradação boçal da prostituição nos e dos media, digo eu. Uma sexualidade degradada e desumanizante, na busca exclusiva do prazer venéreo e utilizando o outro como simples meio!
De qualquer forma, a Igreja precisa de reconciliar-se com o mundo e a ciência, o corpo e a sexualidade. Mas enquanto se mantiver a lei do celibato obrigatório não estará todo o discurso eclesiástico sobre o tema debaixo do fogo da suspeita? O Cardeal Carlo Martini, exegeta bíblico eminente e antigo arcebispo de Milão, interrogou precisamente esta lei do celibato obrigatório e, depois de considerar os estragos da encíclica Humanae Vitae e que "a solidão da decisão" por parte do Papa Paulo VI, depois de ter retirado a discussão do tema aos padres conciliares, não foi certamente "um pressuposto favorável" para tratar a questão da sexualidade e da família, reconheceu que os anos de distância da sua publicação "nos poderiam permitir um novo olhar". "É um sinal de grandeza e auto-consciência alguém confessar os seus erros e visão limitada." Assim, Martini pensava que um novo Papa "talvez não retire a encíclica, mas pode escrever uma nova e ir mais longe. É legítimo o desejo de que o Magistério diga algo de positivo sobre o tema da sexualidade." Muitos esperam uma palavra de orientação sobre o corpo, o casamento e a família. "Procuramos um caminho para, de modo fiável, falar sobre o casamento, o controlo da natalidade, a procriação medicamente assistida, a contraceção."
Sobre estes e outros temas é o que tem procurado fazer o Papa Francisco. Leia-se, por exemplo, a exortação Amoris Laetitia, "A Alegria do Amor", precisamente sobre uma nova visão da família e da sexualidade, que, para ser verdadeiramente humana, tem de envolver o biológico, o afetivo, a ternura, o amor, o espiritual.
E chamo a atenção para a elegância com que tratou o tema num diálogo recente com um grupo de jovens da Diocese de Grenoble. Duas jovens interrogaram-no precisamente sobre a sexualidade, perguntando concretamente se o facto de pertencerem à primeira geração que ousa falar abertamente destes temas não explica as incompreensões e o silêncio embaraçado dos mais velhos. Francisco respondeu: "A sexualidade, o sexo, é um presente de Deus. Não é de modo nenhum um tabu. É um dom de Deus, um presente que o Senhor nos dá. Tem dois objetivos: amar-se e gerar vida. É uma paixão, e um amor apaixonado. O verdadeiro amor é apaixonado. O amor entre um homem e uma mulher, quando é apaixonado, leva-te a dar a vida para sempre e a dá-la com o corpo e a alma", declarou o Papa com força.
"Quando Deus criou o homem e a mulher, a Bíblia diz que os dois são a imagem e a semelhança de Deus. Os dois, não apenas Adão ou só Eva, mas os dois em conjunto", insistiu. "E Jesus vai mais além e diz: o homem e também a mulher deixarão o seu pai e a sua mãe e unir-se-ão e serão... uma só pessoa?... uma só identidade?... Uma só fé no casamento?... Uma só carne! Esta é a grandeza da sexualidade. E é assim que se deve falar da sexualidade. E deve-se viver a sexualidade assim, nesta dimensão do amor entre homem e mulher por toda a vida. É verdade que as nossas fraquezas, as nossas quedas espirituais, nos levam a usar a sexualidade fora deste caminho tão belo do amor entre o homem e a mulher. Mas são quedas, como todos os pecados. A mentira, a cólera são pecados capitais, mas isso não é a sexualidade do amor: é a sexualidade coisificada, desligada do amor e utilizada para o divertimento", explicou.
Francisco sublinhou ainda o paradoxo que consiste no facto de a mais bela dimensão da criação divina ser também "a mais atacada pela mundanidade, pelo espírito do mal". A pornografia, por exemplo, depende de uma "indústria da sexualidade desligada do amor". "É uma degeneração em relação ao nível em que Deus a colocou, e faz-se muito dinheiro com este comércio. Mas a sexualidade é grande: cultivai a vossa dimensão sexual, a vossa identidade sexual. Cultivai-a bem. E preparai-a para o amor, para inseri-la neste amor que vos acompanhará durante toda a vida".
Por outro lado, mesmo se o Documento final do recente Sínodo dos bispos sobre os jovens e com os jovens ficou aquém das expectativas, no "Instrumentum laboris", texto de preparação e de base para o debate, reconhecia-se que "muitos jovens católicos não seguem as indicações da moral sexual da Igreja", e que há "temas controversos" como os anticonceptivos, a homossexualidade, o aborto, o casamento ou a questão de género. O texto, apresentado pelo cardeal Baldisseri, aceitava que é preciso debater "abertamente e sem preconceitos" esses e outros temas, do desemprego às novas tecnologias, passando pelos desafios das migrações, o trabalho precário, as drogas, o papel da mulher. Entretanto, nesse Sínodo, houve vozes como a do bispo auxiliar de Lyon, Emmanuel Gobilliard, que abriu a porta do Sínodo aos LGBT: "Quem sou eu para excluí-los?" Francisco disse sempre que o problema não é a homossexualidade, mas "o lóbi gay", como outros lóbis. Mais recentemente, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Presidente da Conferência Episcopal Alemã, reclamou uma revisão do celibato obrigatório: "Estou convencido de que o grande impulso de renovação do Vaticano II não está a avançar nem a ser entendido na sua profundidade."
Entretanto, a Igreja carrega com essa chaga que é a pedofilia por parte do clero. O Papa Francisco está disposto a usar mão firme nesse combate. No discurso natalício à Cúria, depois de ter reafirmado que mesmo um só caso de abuso seria "uma monstruosidade por si mesmo", declarou: "Aos que abusam dos menores quero dizer-lhes: convertei-vos e entregai-vos à justiça humana, e preparai-vos para a justiça divina". Agradeceu aos jornalistas "que procuraram desmascarar estes lobos e dar voz às vítimas". A Igreja levará à justiça "seja quem for" que tenha cometido abusos. E convocou os Presidentes das Conferências Episcopais do mundo inteiro para uma reunião antiabusos, que enfrente esta chaga dolorosíssima. Como disse o diretor editorial do Dicastério (Ministério) para a Comunicação do Vaticano, Andrea Tornelli: "O objectivo é que todos tenham absolutamente claro o que se deve fazer (e não fazer) frente aos abusos". Trata-se de "transformar os erros cometidos em oportunidades para erradicar" a praga dos abusos "não só do corpo da Igreja, mas também da sociedade".
Anselmo Borges, no DN
Padre e professor de Filosofia