Georgino Rocha |
João surge na vida pública como um profeta itinerante nas margens do rio Jordão, após uma experiência significativa no deserto. Aqui recebe a palavra de Deus que lhe é dirigida. Aqui faz o contraste da vida sóbria e austera com a da Jerusalém, onde o pai Zacarias oficiava no Templo, e a da aldeia onde nascera, a poucos quilómetros da cidade. Aqui encontra o silêncio indispensável ao coração para amadurecer os apelos que ia sentindo e as convicções que ia gerando. Aqui toma a decisão de dar voz à experiência feita e parte em missão.
Lucas faz o relato do sucedido, situando o episódio num contexto político e religioso de grande envergadura. Indica assim o alcance histórico da novidade que desponta. Refere nomes e datas, menciona o imperador de Roma, o governador da Judeia, e outras figuras gradas nas regiões próximas, bem como na área religiosa. (Lc 3-1-6). As credenciais do registo ficam apresentadas, a solicitar a abertura à verdade que se anuncia. E o protagonista sente-se mandatado para realizar a missão recebida. “Foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto. E ele percorria toda a região do Jordão” refere o evangelista narrador.
“As pessoas mais pobres e marginalizadas nas nossas sociedades trazem-nos verdadeiras mensagens de esperança”, afirma o arcebispo de Manila, nas Filipinas. “É nos lugares pequenos e imundos que nascem os nossos reis, não em palácios”. Esta forte imagem foi apresentada pelo cardeal Luis Antonio Tagle, presidente da Cáritas Internacional em mensagem recente sobre a preparação do Natal cristão. A verdade da afirmação contrasta fortemente com o que vemos e, se calhar, alimentamos.
A palavra de Deus emerge situada na história, é dirigida a pessoas concretas, é portadora de salvação, faz-se caminho com todos os humanos, torna-se fonte de energias revigorantes, faz ver a salvação de Deus a todas as criaturas (Lc 3, 6). A palavra de Deus é confiada a João. Não é sua, mas do Senhor que já havia inspirado outros homens e mulheres, designadamente Isaías, explicitamente citado no texto que lemos hoje: “Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor”. E o profeta indica alguns pontos concretos desta preparação, servindo-se de elementos telúricos: Endireitar veredas e caminhos tortos, altear vales e abater montes e colinas, aplanar arestas, reparar fissuras.
E da terra mãe somos convidados a visitar o coração, sede do nosso eu. Que há na minha vida que precise de ver realinhado pelos caminhos do Senhor? Que baixios no meu ram-ram devem ser atendidos e elevados com uma consciência desperta e responsável? Que arestas do meu feitio, que se repercute no relacionamento com os outros, é necessário limar? E que fissuras na coerência do que digo acreditar com o que vivo e testemunho? Será muito benéfica uma visita ao livro da minha vida e uma leitura à luz da Palavra do Senhor que João anuncia.
Passando do meu eu à sociedade de que faço parte e à Igreja de que sou membro, que encontro a realinhar ou a transformar e em que posso/devo ajudar? O primeiro passo é sempre indispensável para a grande caminhada. Pode ser orar pelos que se arrastam na vida sem sentido motivador, aproximar-me de familiares, lembrar os esquecidos e abandonados, visitar idosos e doentes, partilhar bens com pobres e necessitados, aconselhar hesitantes e transmitir-lhes a sabedoria da vida, denunciar injustiças e solidarizar-me com quem faz reivindicações justas, cuidar do equilíbrio do ambiente, anunciar a novidade de Deus que brilha nas aspirações profundas do coração humano e faz erguer a sua voz discreta nos gemidos da humanidade, professar a fé católica, sem inibições nem arrogâncias.
Santo Agostinho, numa das suas catequeses sobre o Advento, afirma que João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra. João era a voz, passageira; Cristo, a Palavra eterna desde o princípio”.Suprimi a palavra e em que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração”.
E o Papa Francisco faz-nos um convite singular: “Olha o profundo do teu coração, vê o íntimo de ti mesmo e faz a pergunta: tens um coração adormecido ou desejas grandes coisas? O teu coração conserva a inquietude da busca ou está sufocado pelos bens que acabam por o atrofiar? E continua a perguntar: Necessito de Jesus, para quê? Que me oferece ele com a sua vinda? É a sua oferta que eu, sinceramente, quero receber?”
São Paulo, na carta aos cristãos de Filipos, lida hoje, dá graças a Deus pelo bem que eles realizam e declara: “ Por isso, lhe peço que a vossa caridade cresça cada vez mais em ciência e discernimento para que possais distinguir o que é melhor e vos torneis puros e irrepreensíveis para o dia de Cristo, na plenitude dos frutos da justiça que se obtém por Jesus Cristo, para louvor da glória de Deus”. Bela oração que é testemunho a acolher e exemplo a imitar. Bom advento de Natal!
Georgino Rocha