domingo, 23 de dezembro de 2018

A sabedoria que falta

Bento Domingues

 «Por que razão, havendo recursos, ciência e técnica para tornar a vida humana mais feliz, temos este mundo atolado em fomes, doenças, guerras horríveis e conflitos estúpidos?»

1. Deram a um miúdo de Nazaré, de há mais de dois mil anos, o nome Jesus. O pai chamava-se José, com a profissão de carpinteiro [1], e a mãe era Maria, dona de casa. Dizem que naquele contexto, era normal que o filho aprendesse a exercer a profissão do pai. Como viviam a sete km de uma grande cidade em construção, Sephoris, é provável que fosse aí que ambos tivessem mais oportunidades de trabalho [2].
Na exegese bíblica, por boas razões, os chamados Evangelhos da Infância são lidos como transposições das descobertas da vida adulta para os primeiros anos de uma criança.
Paulo, o primeiro escritor cristão, não se demorou em considerações sobre a infância e a adolescência de Jesus. A mesma coisa aconteceu com Marcos e com o Quarto Evangelho. Paulo disse apenas que Jesus era nascido de mulher, ainda sob a Lei mosaica [3]. João introduziu a sua narrativa com um hino muito belo, apontando para a pré-existência e a incarnação da Palavra primordial. Marcos apresenta-o já como adulto no movimento de João Baptista [4].
Não posso expor, aqui, as preocupações que presidiram à elaboração literária dos primeiros anos de Jesus e da sua genealogia. Mateus vê nesse menino o começo da realização simbólica da esperança do antigo Israel; o olhar de Lucas abre-se a toda a humanidade. Enquanto, para Paulo, o importante era não deixar o projecto de Jesus Cristo circunscrito ao chamado povo eleito, a astúcia de Lucas é ainda mais engenhosa: a mensagem de Jesus destina-se a todo o mundo porque ele incarna o sentido da história de toda a humanidade. Na figura simbólica de Adão tem antepassados em todos os povos.


2. Não pretendo, nesta crónica, abordar a inesgotável questão da distinção entre o Cristo da fé e o Jesus da história que se agita, no campo cristão, desde o século XIX, passando por várias fases de investigação, classificadas por Gerd Theissen, até às mais recentes. A obra monumental do católico John P. Meier que interpreta Jesus como judeu marginal não impediu que o investigador judeu, A. Lacocque, opte por considerar Jesus o judeu central. Nenhum deles pode pensar que ficou dita a última palavra [5]!
Não se deve procurar, nos contos da chamada infância de Jesus, uma história segundo os moldes actuais, nem ver neles uma estranha biologia divina ou um tratado de astronomia. São muito mais do que um álbum da família de Nazaré, fixado como quadro exemplar de família.
Foi na vida adulta que o Nazareno testemunhou a sua missão. As mais belas representações do Natal servem para mostrar que ele não é um meteorito caído do céu. Nasce e vive segundo o Espírito de Deus, mas como todos os seres humanos. As narrativas sobre o curral em que nasceu, sobre as visitas entusiasmadas dos pastores que não eram frequentadores do Templo, dos Magos estrangeiros, do susto de Herodes, da matança das crianças, da fuga para o Egipto e do bom comportamento das estrelas, significam que nasceu na história humana, em data aproximadamente conhecida, à margem dos poderes de dominação, mas aberto ao mundo e aos marginalizados da sociedade e da religião oficial.
Quando se procurou ler esses contos em registo historicista, nasceu, então, a vontade de verificar se foi mesmo assim que as coisas aconteceram. Quem acreditava que eram narrativas literalmente ditadas por Deus infalível tinha de confessar que lhe era exigida uma fé irracional, pois as narrativas não coincidem. Se metermos por esse caminho, acabamos em escandalosos becos sem saída.
Talvez seja mais adequado reconhecer esses textos magníficos, que os cristãos vão ler na época natalícia, como obras de literatura religiosa. Merecem ser abordadas como teologia literária e não como teologia escolástica.
Neste sentido, tenho uma devoção especial pela imaginação poética de Kahlil Gibran no seu Jesus, o Filho do Homem [6]. Coloca no século XX todas as figuras que tiveram a ver com o mundo de Jesus, para nos dizerem o que as comoveu e que nos continuam a interrogar. Gibran escreveu um novo e antigo evangelho sobre o momento, sem limites de tempo, em que a humanidade tomou a mais alta forma humana.

3. A época em que vivemos é de crescente investigação científica, de capacidades tecnológicas espantosas, mas, observando o que acontece em todos os povos, é também um tempo de reduzida sabedoria. A aplicação da ciência e da técnica tanto pode realizar os bons sonhos da humanidade como transformar-se numa ameaça. Esta é uma convicção muito partilhada. Surge, então, a questão: por que razão, havendo recursos, ciência e técnica para tornar a vida humana mais feliz, temos este mundo atolado em fomes, doenças, guerras horríveis e conflitos estúpidos?
Como não estamos pré-determinados, como temos de construir a nossa vida com os recursos genéticos e culturais que herdamos, como estamos num mundo cheio de contradições e onde a nossa harmonia interior é sempre precária, é inevitável a pergunta: que fazer?
Há respostas cínicas: este mundo não tem conserto e não vale a pena pensar que algum dia a história humana será mais interessante do que é hoje. As utopias existem apenas para serem negadas.
No entanto, ninguém, com juízo, deseja a melhoria dos meios de destruição colectiva. Pelo contrário. Todos os movimentos ecologistas e de defesa dos direitos humanos significam que não é a resignação o nosso horizonte.
Se todos os meios de comunicação vão fazer balanços do que neste ano correu bem e do que correu mal, é porque não se acredita que estamos definitivamente derrotados. Acredita-se que a esperança precisa de ser ajudada, a nível individual, familiar e colectivo.
A sabedoria é um bem mais escasso do que os recursos, a ciência e a técnica. Um dos melhores presentes culturais deste Natal é o começo da publicação dos Livros Sapienciais do Antigo Testamento, traduzidos por Frederico Lourenço [7]. No entanto, S. João propôs ao velho Nicodemos a sabedoria que nos falta: nascer de novo [8]. Por isso, o nosso baptismo, o nosso radical renascimento, é o Natal que nos esquecemos sempre de celebrar, mesmo no Natal.
Boas Festas

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Em Mc 6, 3 Jesus é carpinteiro. Em grego, tektón, significa que não trabalhava só madeiras, mas também pedra e tudo o que é preciso para construir uma casa; em português talvez se possa chamar artesão.
[2] Destruída durante a rebelião contra o ocupante romano, hoje, é uma aldeia dos arredores de Nazaré que se tornou cidade.
[3] Gal 4, 4
[4] Jo 1, 1-10
[5] Escritos como o Tratado de Ateologia de Michel Onfray não precisam de investigações alheias porque já decretaram que a posição deles é a única verdadeira.
[6] K. Gibran (1883-1931). É uma obra de 1928, trad. Europa-América, 2005
[7] Frederico Lourenço, Bíblia, Volume IV, Os livros Sapienciais, Tomo I, 2018
[8] Jo 3

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