Jesus encontra-se em Jerusalém e vive o conflito decisivo que Marcos narra em episódios sucessivos. Recorre a vários meios para ensinar as pessoas que o acompanham, alertar os discípulos e interpelar fortemente os opositores. Por vezes, na sua pedagogia de mestre, chega ao contraste de atitudes para deixar com maior clareza a novidade da sua mensagem. Hoje, os contrastantes são os escribas doutores da Lei e os ricos face a uma viúva pobre. Hoje, os episódios ocorrem na esplanada e no interior do Templo. Hoje, o olhar de Jesus mostra que sabe ler a vida, ver a verdade das situações, ir além das aparências e identificar as intenções. São episódios recheados de ensinamentos que vale a pena saborear. (Mc 12, 38-44).
A leitura que Jesus faz das atitudes dos encarregados oficialmente de explicar a palavra de Deus contida na Lei causa-nos calafrios. É perentória e requer cautela. Denota gostos de quem aprecia o exterior e esquece o interior, a simplicidade do coração. Tem como sinais: As vestes compridas reluzentes, as saudações na praça pública, os lugares de honra em locais de culto, nos banquetes e nas festas. Tudo para “encher o olho”. Tudo a pôr a claro o sentido de um proceder desviado, de uma vazio existencial. Jesus vai mais longe e diz: “Exploram as viúvas e roubam as suas casas, e, para disfarçar, fazem longas orações”. Que leitura tão interpelante! Por isso, exorta os ouvintes a terem cuidado e sentencia a condenação de quem cultiva tais sentimentos e pratica tais acções.
E surge com naturalidade a pergunta: Terá alguma actualidade a leitura da vida feita por Jesus? Não haverá, ainda hoje, quem preze mais as aparências do que a verdade da realidade “nua e crua”? Mesmo em nós, “a aragem condiz com a carruagem”, dito popular de grande alcance sapiencial? Vale a pena fazermos uma visita à nossa consciência e passarmos em revista as nossas atitudes.
“Jesus critica os intelectuais da classe dominante que transformam o saber em poder, aproveitando-se da própria situação para viverem ricamente à custa das camadas mais pobres do povo, afirma a Bíblia Pastoral em comentário a esta passagem. Disfarçando tal exploração com orações, isto é, com motivo religioso, tornam-se ainda mais culpados”.
Em contraste com o proceder dos escribas doutores, surge a atitude da viúva pobre. Marcos descreve a cena com algum requinte: Jesus entra no Templo, senta-se na sala do Tesouro, onde estavam as caixas para as receber para as ofertas, ladeadas por um sacerdote, observa quem se aproxima, dá conta de que “muitos ricos depositavam muito dinheiro”. Era um gesto público facilmente observável. Jesus vê chegar uma viúva pobre e acompanha os seus movimentos: Aproxima-se de uma caixa e deixa a sua oferta, retira-se perdida na multidão, anónima, sem que alguém se apercebesse.
Mas Jesus, bom observador dos gestos e fino leitor da consciência, dá conta e aproveita a ocorrência para uma bela catequese aos discípulos. Chama-os e diz-lhes: “Eu vos garanto: Esta viúva pobre depositou mais que todos os outros juntos que deitaram moedas no tesouro”. Que ousadia de afirmação: uma pessoa, mais que todas juntas; umas moedas de pouco valor, mais que a importância de todos os ricos; uma pobre discreta, mais que todos os “pavões” do Templo. Que ousadia! E os discípulos ouvem em silêncio e não pedem explicações, mas Jesus adianta-as: “Porque todos deitaram do que sobrava. Mas a viúva, na sua pobreza, depositou tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver”. Que grande impacto emocional lhes terá causado”! E a nós, que nos diz este contraste?!
Faz-nos bem mergulhar no tempo e verificar as condições da mulher viúva pobre. Alguns passos do Antigo Testamento podem abrir-nos horizontes: A pobreza e vulnerabilidade da viúva de Sarepta, hoje lembrada na 1.ª leitura; a injustiça e o desprezo, apontados por vários profetas encarregados de fazer ressoar a vontade de Deus em favor da justiça que lhes deve ser feita; a perda de protecção legal, após a morte do marido; o não ter direito de sucessão; o ficar sem herança, pois os bens passavam para os filhos ou filhas do falecido. E outros elementos que atestam a sua situação precária e ajudam a compreender o seu estado de angústia permanente.
Esta situação ainda se mantém no tempo de Jesus. Por isso, é muito significativa a atenção que lhes dedica e o destaque que faz na sua pedagogia de Mestre. Os Actos dos Apóstolos narram a discriminação que havia na comunidade e o surgir de um novo serviço de atendimento que está relacionado com o diaconado. (Act 6, 1- 6). Ao longo da história, as próprias viúvas se organizam e criam associações de ajuda mútua. Sirva de referência, entre nós, o “Movimento Esperança e Vida”.
O contraste deve ter provocado o espanto dos discípulos. A pobre viúva dá o que tem para viver “é uma pessoa sem cargos, nem poder, nem dignidade, nem saberes, nem nada que não seja um coração bom, o que quer dizer uma pessoa em que não há títulos, nem dignidades, mas somente humanidade”, afirma J. M. Castillo, La religión de Jesús, ano b, p. 306. Dá e confia. As moedas são o símbolo da sua doação. Ela dá-se a si mesma. Tal como Jesus fará e hoje a 2.ª leitura nos recorda: Cristo oferece-se de uma vez por todas em nosso favor.
O coração da viúva pobre deve ter vibrado de felicidade pois “Deus ama quem dá com alegria” (2.ª Cor 9, 7). Luciano Manicardi acrescenta a propósito: “Dar torna-se assim experiência de ser amado por Deus… Dando entramos no coração da vida, na sua dinâmica profunda, que é precisamente a dinâmica do dom. E assim conhecemos a alegria, que é gratidão e sentido de plenitude: «Há mais alegria em dar do que em receber» (Act 20, 35).
Oxalá a nossa vida possa merecer a garantia que Jesus deu ao gesto da viúva pobre. Bom domingo!
Georgino Rocha