Georgino Rocha |
"A Igreja quer estar liberta para servir a verdade. Em todas as situações. É missão que diz respeito a cada um/a. Conforme o espaço onde habita e o ambiente onde trabalha. A começar pela proximidade na família e alargando-se a outras lonjuras, pois o mundo é a nossa casa e a natureza nossa mãe."
Jesus, preso e amarrado, é levado a Pilatos por uma delegação das autoridades judaicas. Era de manhã e estava próxima a páscoa. O episódio abre a narração que São João faz do desfecho do processo de condenação à morte. Jesus é entregue como malfeitor e vai passar a ser um criminoso político. A sequência da acusação torna-se esclarecedora de tantas situações em que a verdade é sacrificada porque o interesse, a conveniência e o preconceito falam mais alto. Vamos deter-nos nos diálogos de Pilatos com Jesus e procurar penetrar nos sentimentos de cada um. Vamos ver pontos concretos que, à maneira de projectores, iluminam a consciência de quem quer agir livremente e tem regras para cumprir. Vamos acolher a novidade que Jesus nos transmite com a sua atitude, seu silêncio e sua palavra. (Jo 18, 33b-37).
Pilatos entra e sai do palácio algumas vezes: ora para atender os judeus e receber Jesus, ora para dar uma satisfação a quem estava na esplanada à espera da sentença de morte, ora para encontrar uma saída airosa que o liberte da responsabilidade do desfecho da caso. Para isso, baseado num costume incontestado, recorre a um expediente com aspectos de plebiscito: “Quereis que vos solte o rei dos Judeus?” A resposta surge em coro: “Ele não. Solta Barrabás”.
Barrabás, o salteador, “é o símbolo da violência que busca o poder, que perpetua o modo de ser dos reinos deste mundo, afirma o comentário da Bíblia Pastoral. As autoridades preferem Barrabás porque a pessoa de Jesus põe em risco os reinos deste mundo”.
No interior do palácio, na sala das audiências, Pilatos está sentado e Jesus de pé. Estão sós. Momento decisivo e solene. E o diálogo de inquirição começa a um nível inesperado: “Tu és o rei dos judeus?”. A pergunta manifesta uma preocupação claramente política. O argumento das autoridades judaicas era outro. Jesus vinha acusado de malfeitor. E diga-se de passagem com muita razão. A sua atitude face às leis e tradições que subjugavam as pessoas era conhecida e, por vezes, ostensiva. Sendo preciso, transgredia o sábado, atendia os proscritos, curava os feridos da vida, mostrava que a pessoa e o respeito à sua dignidade é o que Deus quer de nós, e é, agora e aqui, a realização possível do seu reinado de amor, justiça e paz.
Jesus devolve a pergunta, abrindo-a a um novo sentido: “Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram a Meu respeito?” Jesus não pretende violar o segredo das fontes de informação de Pilatos, mas ajudá-lo a mergulhar na sua consciência, a agir por conta própria e não como marioneta política coberta com a capa da religião. A sequência mostra Pilatos a afirmar a sua pretensa isenção e a querer saber dados objectivos da situação: “Que fizeste?”
Boa pergunta para Jesus fazer o relato das suas benfeitorias (e não malfeitorias, de que era acusado). Mas Jesus não vai por aí. Prefere continuar o diálogo na pergunta inicial e dizer o sentido da sua realeza. E a prová-lo aduz o estar sozinho, sem defesas nem guardas de protecção, acusado, preso e amarrado. “O Meu reino não é deste mundo”. Pilatos, em jeito de conclusão, adianta: “Então Tu és rei?”
“Jesus confirma que é rei. A sua realeza, porém, não é semelhante à dos poderosos deste mundo, esclarece a Bíblia Pastoral. Estes exploram e oprimem o povo enganando-o com um sistema de ideias, para esconder a sua acção. É o mundo da mentira. Jesus, ao contrário, é o Rei que dá a vida, trazendo aos homens o conhecimento do verdadeiro Deus e do verdadeiro homem. O seu reino é um reino de verdade, onde a exploração dá lugar à partilha, e a opressão dá lugar à fraternidade”.
É a verdade feita vida, com rosto humano e lisura de procedimentos. É a verdade, reflexo do ser de Deus que se esconde na natureza humana e vai emergindo na consciência das pessoas e na sabedoria dos povos, nas culturas e nas religiões, com especial relevo para a religião cristã configurada na Igreja católica. É a verdade, referência fundamental para aferir a justeza dos valores das declarações universais e das constituições políticas. É a verdade, guia que ilumina o agir recto ou não da nossa consciência.
A festa de Cristo Rei, hoje celebrada, é instituída, em 1925, por Pio XI num contexto europeu de grande agitação política. Os efeitos ruinosos da 1.ª Grande Guerra ainda estavam bem vivos. Há sinais alarmantes de descrédito dos sistemas em vigor e de formações partidárias que pugnam por uma nova ordem. E vão surgir ditaduras de grande calibre e dureza. Pio XI ergue a voz e apresenta Jesus Cristo, Rei do Universo, Senhor do Tempo, Príncipe da Paz que traz à humanidade o Reino de Deus, reino de verdade, amor, justiça e paz. Prescreve que esta festa seja celebrada em toda a Igreja e espera que os Estados civis reconheçam Cristo como Rei universal.
“Os condicionalismos sociais e históricos modificaram-se por completo, adianta o Missal Popular, e foi então possível a celebração da festa de Cristo Rei no seu verdadeiro contexto litúrgico e teológico. Cristo é verdadeiramente Rei, mas numa ordem diferente da temporal, como Ele afirmou. A Igreja liberta-se de compromissos terrenos, a maior parte das vezes contrários à sua missão específica de evangelização e defensora dos pobres”. O Papa Francisco não cessa de o proclamar.
A Igreja quer estar liberta para servir a verdade. Em todas as situações. É missão que diz respeito a cada um/a. Conforme o espaço onde habita e o ambiente onde trabalha. A começar pela proximidade na família e alargando-se a outras lonjuras, pois o mundo é a nossa casa e a natureza nossa mãe.
Hoje, destaca-se de modo especial a missão dos leigos chamados a impregnar a cidadania com a fé cristã, com a força da verdade e a confiança da esperança. Chamados a testemunhar a riqueza das diferenças na unidade da comunhão. A seguir Jesus Cristo, o Senhor da Verdade.
Georgino Rocha