Anselmo Borges |
1. Evidentemente, fico contente e aplaudo o equilíbrio do défice, a descida do desemprego, alguma subida concretamente dos salários e das pensões mais debilitados, o elogio estrangeiro ao desempenho do país em domínios económico-financeiros... Significa isto a minha completa sintonia com a aparente euforia nacional? Infelizmente, não.
2. E não sintonizo porquê? As razões são múltiplas e não posso elencá-las todas. Ficam aí algumas, um pouco desajeitadamente e correndo o risco de transgredir o preceito do ne sutor ultra crepidam (o sapateiro não deve ir além da sandália).
2. 1. Mesmo do ponto de vista económico-financeiro, desconfio da afirmação de que chegou o fim da austeridade. Porquê? Vejo, por exemplo, o preço dos combustíveis, a carga de impostos e taxas e mais taxas, não sem sublinhar que os impostos indirectos são os mais injustos, porque cegos, atingindo tanto os ricos como os remediados ou os pura e simplesmente pobres... E, quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar (já se sabe do abrandamento do crescimento económico da União Europeia no próximo ano)... Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida toda (pública, das empresas, das famílias...) está em 700 mil milhões de euros (será que li bem?). E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se também com o facto de não valer a pena ou até ser prejudicial, ao pensar no que os bancos cobram e, depois, as pessoas ainda se lembram de que vários bancos faliram e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo permanecerá com a força do presente? Que investimentos se tem feito? Que planos para tempos de crise? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens. E não sofrem de eleitoralismo algumas medidas, cedendo às exigências das várias funções do Estado, dentro do fascínio causado pela tal percepção de que a situação económico-financeira está como nunca? E as famosas cativações?... E quem pensa no tsunami demográfico?
2. 2. Incomoda-me sumamente a falta de racionalidade no país. Exemplos simples. Como foi possível chegar à situação inacreditável da CP, sem comboios?! E o aeroporto de Lisboa? Diz-se, e é verdade, que os portugueses trabalham mais horas do que os alemães. Mas o problema não é esse, o problema é a produtividade. Perto de onde vivo, há uma pequena estrada de muito movimento que esteve com o trânsito atrapalhado durante meses, porque tiveram de esburacá-la várias vezes, para meter mais isto ou aquilo; com racionalidade, far-se-ia tudo de uma só vez. Na minha terra, arranjaram a estrada no ano passado e já está cheia de buracos. Aliás, até nas auto-estradas há buracos, que eu nunca vi, por exemplo, na Alemanha, onde as intempéries de frio e neve são mais duras. Julgo que a situação também tem que ver com o seguinte: na mentalidade alemã, o que é bom para a Alemanha os alemães consideram-no bom para eles, mesmo individualmente considerados; no caso dos portugueses, não há a ideia de que o que é bom para Portugal é bom para cada um e, por isso, cada um procura arranjar-se como pode, e aí está a corrupção: por exemplo, um milímetro de alcatrão a menos em milhares de quilómetros de estrada é muito dinheiro... E "desvia-se" dinheiro descaradamente em muitos lados: veja-se, mais uma vez a título de exemplo, o que aconteceu em Pedrógão, não se sabendo ainda muito bem para onde foi o dinheiro da generosidade dos portugueses, para não citar outras aldrabices. E há promessas e mais promessas para isto e para aquilo, quase para todos, e o problema, depois, é cumpri-las. Fica-se à espera de Godot... Onde está a honra?
2. 3. E há o laxismo no cumprimento da lei. Está lá bem escrito, com imagem e tudo, que é proibido passear com o cão, mas lá andam os donos com os cães a produzir, para gáudio deles, doses maciças de cocó, que não limpam. E ai de quem ousasse chamar a atenção! Também é proibido andar de bicicleta, mas elas voam até nos passadiços, para aborrecimento dos peões, que querem andar calmamente, sem ser perturbados. Qual é a percentagem de condutores que dão os respectivos sinais quando mudam de direcção na estrada? Vejo, junto da minha casa, agentes da polícia a passear, fardados, passando ao lado de carros estacionados, apesar do sinal de proibição bem visível... Já estive para dizer-lhes que mandassem retirar o sinal de proibição, pois, se se pode não cumprir ali a lei na presença da polícia, porque é que se há-de cumprir nos outros sítios? Para fomentar o laxismo e, com o tempo, preparar a revolta: programas de televisão absolutamente estúpidos e deletérios e os extremismos confusionistas sobre as chamadas questões fracturantes, as relações entre sexo e género e pessoas e animais... E o exemplo inacreditável de políticos que faltam descaradamente às sessões do Parlamento? E as regalias e privilégios autoconcedidos? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam 7,17 milhões de euros e a lista continua em segredo, que extras quase duplicam o salário dos deputados (no ano passado, o Estado terá gasto mais de três milhões só a cobrir deslocações feitas - ir e vir para casa ou trabalho político no seu círculo eleitoral), para não falar no caso dos deputados insulares... E, em geral, os portugueses não têm a cultura do trabalho, do dever e do mérito, e instalou-se a mentalidade do encosto ao Estado...
2. 4. E há alguma falência do que é estruturante.
Neste domínio, o que se passa com o caso de Tancos é simplesmente rocambolesco e inacreditável, pois trata-se de algo que tem que ver com a soberania.
Quer se queira quer não, quanto à Justiça, para lá de ser lenta e por isso pouco eficaz, se se ler e ouvir a opinião pública, constata-se o pior: que foi atingida pelo véu de alguma desconfiança.
Quanto à saúde: quem frequenta hospitais fica abismado com as filas intermináveis... Os meios de comunicação social apontam para situações de autêntico caos. Ai dos pobres!
A educação: no estado que se sabe. Quanto aos conteúdos, não entendo o constante experimentalismo; será que não é possível estabelecer programas com um mínimo de estabilidade, para ser possível uma correcta avaliação, sem esquecer que a educação pertence à coluna vertebral de um país? Quanto aos professores, gostava de chamar a atenção para a instabilidade em que vivem: há antigos alunos meus da universidade que andam há anos e anos a saltar de escola em escola, percorrendo o país de norte a sul, o que causa imensa perturbação para eles e para os alunos. Veja-se: nem podem constituir família nem ter filhos, e a desmotivação instala-se e a incompetência aumenta. Não há solução para isto? Quanto ao ensino superior, é preciso combater a estagnação e gostava de dizer que, em vez de se baixar as propinas para todos, era mais razoável atribuir bolsas para os mais frágeis economicamente, mas capazes. Aplaudo que se pense em acabar com elas e em encontrar mais possibilidades para que o maior número possível de jovens possa frequentar o ensino superior. E é necessário apoiar harmonicamente tanto as ciências ditas exactas e as tecnologias como as ciências humanas, pois, sem ética e humanismo, para onde pode levar-nos o progresso técnico?
3. Há um conjunto de questões que precisam urgentemente de um consenso mínimo nacional, com duração suficiente para a sua avaliação, referentes à educação, à justiça, à saúde, à segurança social. Para evitar o sobressalto constante.
Anselmo Borges, no DN
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia