sábado, 20 de outubro de 2018

Francisco ​​​​​​​em Pequim?

Anselmo Borges

1. A perseguição aos cristãos foi particularmente feroz durante a Revolução Cultural no tempo de Mao. Mas a situação está a mudar de modo rápido e surpreendente. Desde 1976, com a morte de Mao, as igrejas começaram a reabrir e há quem pense que a China poderá tornar-se mais rapidamente do que se julgava não só a primeira potência económica mundial mas também o país com maior número de cristãos. "Segundo os meus cálculos, a China está destinada a tornar-se muito rapidamente o maior país cristão do mundo", disse Fenggang Yang, professor na Universidade de Purdue (Indiana, Estados Unidos) e autor do livro Religion in China. Survival and Revival under Communist Rule (Religião na China. Sobrevivência e Renascimento sob o Regime Comunista). Isso "vai acontecer em menos de uma geração. Não há muitas pessoas preparadas para esta mudança assombrosa". 
Cresce sobretudo a comunidade protestante. De facto, a China tinha apenas um milhão de protestantes. Em 2010, já tinha mais de 58 milhões. Segundo Yang, esse número aumentará para cerca de 160 milhões em 2025, o que faria que a China ficasse à frente dos Estados Unidos. Em 2030, a população cristã total da China, incluindo os católicos, superará os 247 milhões, acima do México, do Brasil e dos Estados Unidos. "Mao pensava que poderia acabar com a religião. E julgava ter conseguido", diz Yang. "É irónico pensar que o que fizeram foi fracassar completamente." 
A situação parece preocupar as autoridades chinesas, que, por outro lado, não quererão 70 milhões de cristãos como inimigos. 

2. Os católicos serão uns 12 milhões. Desde 1951 que a China não tem relações diplomáticas com o Vaticano. Mas o governo chinês felicitou Bergoglio a seguir à sua eleição como novo Papa e exprimiu o desejo de que, sob o pontificado de Francisco, o Vaticano "elimine os obstáculos", para uma aproximação. Francisco declarou por várias vezes não só o seu apreço pelo povo chinês como o seu desejo de visitar Pequim. Por exemplo, disse aos jornalistas: "Estamos próximos da China. Enviei uma carta ao presidente Xi Jinping quando foi eleito, três dias depois de mim. E ele respondeu-me. Há contactos. É um grande povo do qual gosto muito." E que está à espera de um sinal para uma visita.
O que é facto é que, aquando das viagens de Francisco à Ásia, a China, pela primeira vez, abriu o espaço aéreo para que um Papa pudesse sobrevoá-la. Não se pode esquecer que Francisco é jesuíta e que o jesuíta Matteo Ricci, cujos conhecimentos científicos deixaram o imperador deslumbrado, juntamente com Marco Polo são os dois estrangeiros recordados por Pequim entre os grandes vultos da China. Aliás, a inculturação do cristianismo na cultura e religião chinesas poderia ter-se dado nos séculos XVI-XVII, por influência precisamente do génio de Ricci, não fora a cegueira do Vaticano, que interveio desgraçadamente, impedindo essa síntese entre o Evangelho e a cultura milenar chinesa. 

3. Francisco é um jesuíta da estirpe de Ricci, que admira: o processo da sua beatificação avança e a frase "venho dos confins do mundo" será citação de Ricci, que dizia ter passado a vida nos "confins do mundo". Francisco é também considerado um "animal político", que sabe de geoestratégia, acompanhado pelo secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, um diplomata de primeira água, como disse o Papa, no regresso da sua viagem aos países bálticos, respondendo às perguntas dos jornalistas sobre o acordo assinado dias antes entre o Vaticano e Pequim: "O secretário de Estado, que é um homem muito devoto, o cardeal Parolin, que tem também uma especial devoção pela observação. Estuda todos os documentos, até nos pontos, nas vírgulas e acentos. Isto dá-me uma segurança muito grande." Foi um acordo que durou anos de negociações e é sabido que, acrescentou o Papa, "quando se faz um acordo de paz ou uma negociação, as duas partes perdem alguma coisa. Esta é a lei. As duas partes, e continua-se. E isto continuou. Dois passos para a frente, um para trás, dois para a frente, um para trás. Depois, passaram meses sem falarmos e depois chegou o tempo de falar, à maneira do tempo chinês, lentamente. Esta é a sabedoria, a sabedoria dos chineses". Não houve improvisação, mas um caminho que durou a percorrer "mais de dez anos". 
Francisco fez questão de sublinhar que assumiu a total responsabilidade pelo que se passou: "Fui eu que assinei o acordo." Em que consiste esse acordo de 22 de Setembro passado? Antes, havia a Igreja Patriótica, com bispos nomeados pelo governo, e a Igreja clandestina, com bispos nomeados e fiéis ao Papa. Agora, "há um diálogo sobre eventuais candidatos. A coisa faz-se em diálogo, mas quem nomeia é Roma, o Papa. Isto é claro." Há uma consulta entre os fiéis para o candidato a bispo, o governo aprova, mas o Papa tem o direito de veto, havendo neste caso a necessidade de encontrar outro candidato. 
Sucede, pois, que o Papa reconheceu sete bispos da Igreja Patriótica, que ficaram, em igualdade com os outros, em comunhão com o Papa. É compreensível que alguns bispos e muitos católicos que foram perseguidos e tiveram de viver na clandestinidade se tenham sentido um pouco traídos e sofram. Para esses Francisco teve também uma palavra: "Penso na resistência, nos católicos que sofreram. É certo, e sofrerão, Num acordo, há sempre sofrimento, mas eles têm uma fé grande, e escrevem, fazem chegar mensagens. Sim, a fé martirial desta gente avança. São grandes." E, numa alusão a Viganó, que o acusou na célebre carta bem conhecida, Francisco contou: "Quando saiu aquele famoso comunicado de um ex-núncio, os episcopados do mundo inteiro escreveram-me, dizendo de modo claro que se sentiam próximos, que rezavam por mim... Os fiéis chineses também escreveram e a assinatura desse escrito era do bispo, digamos, da Igreja tradicional católica e do bispo da Igreja Patriótica, os dois juntos e os fiéis juntos com eles. Para mim foi um sinal de Deus. Rezamos pelos sofrimentos de alguns que não entendem ou que têm às suas costas muitos anos de clandestinidade." 
O primeiro resultado visível deste acordo provisório é a presença no Sínodo dos Bispos sobre os jovens, a decorrer em Roma, de dois bispos da República Popular da China: um da Igreja tradicional e outro da Igreja Patriótica. Na missa de abertura do Sínodo, ao referir os seus nomes, um nomeado por Bento XVI e outro que pertencia à Igreja Patriótica, Francisco comoveu-se: "Hoje, pela primeira vez, estão também aqui connosco dois irmãos bispos da China continental. Demos-lhes as nossas afectuosas boas-vindas: graças à sua presença, a comunhão de todo o episcopado com o Sucessor de Pedro é ainda mais visível." 

4. Poderia Francisco culminar o seu pontificado com uma visita à China? No quadro da reconfiguração geoestratégica daquela região - pense-se nos encontros entre o presidente Donald Trump e o presidente Kim Jong-un, no convite deste ao Papa para uma viagem à Coreia do Norte, nas próximas viagens de Kim a Seul e a Moscovo, na visita próxima do presidente da China, Xi Jinping, a Pyongyang... - e da importância deste acordo sobre um tema que era a principal razão de conflito entre Pequim e o Vaticano, não se pode excluir essa possibilidade ou até, diz-se, probabilidade. 
Mas haverá ainda outro longo caminho a percorrer. O bispo de Hong Kong, Michael Yeung, apoiou - "Eu disse: Santo Padre, avance, não tenha medo, mas seja cauteloso" - e apoia este acordo com a China, mas adverte: "Não creio que a assinatura deste acordo provisório signifique a solução de tudo. É preciso tempo, um par de anos, para ver." Acrescentou que "um acordo provisório não poderia ter parado a opressão" dos católicos chineses por parte do regime comunista nem tão-pouco "ter evitado que as igrejas sejam destruídas" ou que "os jovens sejam proibidos de ir à missa". "Estas coisas exigirão tempo para serem resolvidas." De qualquer forma, pede que daqui em diante o Vaticano vele especialmente por duas coisas: os clérigos "clandestinos" encarcerados por Pequim e a liberdade religiosa. 
Uma questão maior. Como é sabido, para o estabelecimento de relações diplomáticas, a República Popular da China pressiona todos os Estados para que cortem relações com Taiwan. Ora, a Santa Sé continua a reconhecer Taiwan e o Vaticano é mesmo o único aliado que Taiwan tem na Europa. John Hung Shan-chuan, arcebispo de Taipé, declarou em relação ao acordo: "Estamos felizes pelo progresso das relações, fomos informados antes", e acrescentou: "O que vemos é que pela primeira vez o partido comunista está a abanar. Eles dizem que não querem que poderes estrangeiros se metam no seu país, mas desta vez permitiram-no. E isso é um bom sinal, embora não saibamos quais serão as consequências no futuro. Mas não estamos preocupados, porque o Papa disse-nos que não nos ia abandonar nem prejudicar Taiwan. Pedimos-lhe isso e sabemos que como bom pastor não nos vai abandonar." 
Neste enquadramento, a presidente de Taiwan convidou oficialmente o Papa a visitar a ilha, que tem 300 mil católicos, aproximadamente 1,5% da população. E os dois bispos chineses que estiveram no Sínodo - foi a primeira vez - convidaram o Papa a visitar o seu país, a República Popular da China. Para que a visita se concretize, será necessário um convite formal de Pequim. 
Imediatamente a seguir, neste passado dia 18, o Papa Francisco recebeu, como previsto e como escrevi aqui na semana passada, o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que lhe transmitiu oralmente, a pedido de Kim Jong-un, o convite para visitar a Coreia do Norte. Depois do encontro, o porta-voz presidencial sul-coreano, Yoon Young-chan, declarou que "o Papa disse: 'Darei uma resposta incondicional, se me chegar um convite oficial e puder ir'". Já em relação ao convite para visitar Taiwan, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, confirmou, no mesmo dia, o convite, mas "posso afirmar que essa visita do Santo Padre não está a ser estudada", disse. 
Questões da diplomacia, imensas e complexas. 

Anselmo Borges, no DN

Padre e professor de Filosofia 

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