Anselmo Borges |
"Com base na neotenia, o homem tem como tarefa na vida fazer-se a si mesmo: fazendo o que faz, está a realizar-se a si próprio. Por isso, está sempre inconcluído, numa abertura ilimitada, produzindo o novo. O homem nunca está satisfeito (de satis-factus: suficientemente feito), acabado."
Uma das ameaças para o humanismo é a tese animalista que pretende que entre o ser humano e os outros animais não há uma distinção qualitativa, mas apenas de grau. É claro que, no quadro da evolução e uma vez que aparecemos dentro dela, não admira que encontremos já nos chimpanzés, gorilas, bonobos e outros, antecedentes, indícios do que caracteriza os humanos. Pergunta-se: se, como eles, o ser humano também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, quais são as notas especificamente humanas que podemos observar no desempenho dessas actividades por parte do ser humano, mostrando que é qualitativa e essencialmente distinto dos outros? Aponto algumas dessas características observáveis.
Na história gigantesca da evolução - o big bang foi há uns 13 700 milhões de anos e muito recentemente foi-se dando o processo da hominização -, sabemos que há ser humano, quando encontramos rituais funerários, diferentes segundo as culturas, mas sempre presentes. Aí, temos o sinal indiscutível de que já estamos em presença de alguém. A consciência da mortalidade, gastar tempo com os mortos, a sepultura, são acções especificamente humanas, essencialmente distintas das do animal.
O homem é por natureza animal symbolicum, talvez melhor, animal symbolizans (simbólico, simbolizante). Capaz de simbolizar, é constitutivamente animal loquens (animal falante). Inserida no mundo simbólico e simbolizante, surge a linguagem humana, e o que a define enquanto o próprio do homem é a sua dupla articulação em unidades significativas (monemas) e unidades distintivas (fonemas). Pela linguagem, abrimo-nos ao mundo, ao ser, à história, ao que há e ao que não há, a possibilidades, à transcendência, estabelecemos comunidade. Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem logos (razão e linguagem), e assim, animal político: "Só o homem, entre os animais, possui fala. A voz (o som) é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis."
O animal é conduzido pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O homem, pelo contrário, por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que Max Scheler escreveu que o homem é "o asceta da vida", o único capaz de dizer não aos impulsos instintivos: não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Autopossui-se, é dono de si mesmo, senhor de si e das suas acções e, por isso, responsável: responde por si e pelas suas acções, é um animal livre e moral.
Com base na neotenia, o homem tem como tarefa na vida fazer-se a si mesmo: fazendo o que faz, está a realizar-se a si próprio. Por isso, está sempre inconcluído, numa abertura ilimitada, produzindo o novo. O homem nunca está satisfeito (de satis-factus: suficientemente feito), acabado. Esta inconclusão manifesta que a sua temporalidade e o seu ser têm uma estrutura essencialmente aberta, de tal modo que se deve dizer que o homem é o ser do transcendimento: como escreveu Pascal, o homem mora algures entre "le néant et l"infini" ( o nada e o infinito), aberto ao Infinito. Precisamente porque os outros animais se adaptam ao real, sem superação, não podemos falar em transcendência animal. Também se revela aqui a capacidade criadora, inovadora, do homem, de tal modo que a vida da humanidade é autenticamente histórica, na abertura à Transcendência. O homem é o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega a perguntar ao Infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. Os animais comunicam, mas nunca se conseguiu que mesmo um chimpanzé faça uma pergunta.
O homem também repousa. Mas podemos constatar que, por vezes, o aparente repouso é outra coisa, no que chamamos ensimesmamento, como se vê em O Pensador, de Rodin: entrada dentro de si próprio, descida à sua intimidade única, à subjectividade pessoal. O ser humano vem a si mesmo como único. Aí, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro, impenetrável. Disse Jacques Lacan: "Possuir o Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a terra. Por isso, é uma pessoa". Sabe e sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.
E muitas outras características e notas poderia acrescentar, como fez o médico e filósofo Pedro Laín Entralgo - alguém interessado poderá consultar o meu livro Corpo e Transcendência: a vida no real, o pensamento abstracto, o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza - sublinho nomeadamente a música, referida ao indizível -, o amor de autodoação, o suicídio, a capacidade para o ódio, a admiração, a inveja e a extravagância, o choro, a esperança... Erguer edifícios jurídicos, o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei são realidades que dão que pensar, na comparação entre o animal humano, pessoa, e os outros animais.
Last but not least: quem debate a questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente quantitativa, de grau, ou qualitativa, essencial, somos nós e não eles. É preciso combater a ameaça de animalização da sociedade.
Anselmo Borges no Diário de Notícias