Georgino Rocha |
"A lei ao serviço da vida e de tudo o que a qualifica na sua dignidade inviolável. Sem referência à pessoa e ao seu bem maior (o bem comum), a lei corre o risco de ser desajustada e, por vezes, iníqua."
Jesus enfrenta, desde o início da sua missão pública, a desconfiança fria e distante dos fariseus que o vigiam atentamente e fazem provocações acusatórias. Marcos escreve o seu texto após a perseguição de Nero que dizimou muitos cristãos e a comunidade precisava de alento e confiança. O que havia acontecido a Jesus constituía um apoio espiritual reconfortante.
O confronto apresentado na leitura de hoje, Mc 2, 23-28 e 3, 1-6, é o último de uma primeira série que havia ocorrido: ora com os escribas a respeito do perdão dos pecados ao paralítico, ora com os publicanos e pecadores por estar sentado com eles à mesa, ora com discípulos de João e os fariseus por questões ligadas à prática de jejum, ora com os espias a propósito da observância do Sábado. A partir deste último, os opositores de Jesus tomam a decisão de o matar e elaboram um plano com este objectivo.
O confronto com os fariseus-espias ocorre ao sábado e desenrola-se em dois episódios, sendo o primeiro o das espigas apanhadas na seara do campo e comidas pelos discípulos porque tinham fome; e o segundo, o da mão ressequida curada na sinagoga. E a novidade de Jesus afirma-se cada vez mais: O amor de Deus que não faz acepção de pessoas, prefere os esquecidos da sociedade e quer que tudo, sobretudo as instituições e as leis, esteja ao serviço da vida na sua integralidade. Que mensagem oportuna e interpelante! Que mensagem luminosa e encorajante para todos/as os/as que lutam por causas nobres e irrenunciáveis! Que mensagem centrada no essencial para não nos perdermos em pormenores que, sendo importantes como as folhas das árvores, comportam o risco de esconder o tronco e a seiva que lhes dão suporte e vida!
“O centro da obra de Deus é o homem, afirma o comentário da Bíblia Pastoral a este confronto sabático, e prestar culto a Deus é fazer o bem ao homem. Não se trata de estreitar ou alargar a lei do sábado, mas de dar um sentido totalmente novo a todas as estruturas e leis que regem as relações entre os homens. Porque só é bom, aquilo que faz o homem crescer e ter mais vida. Toda a lei que oprime o homem é lei contra a vontade de Deus, e deve ser abolida”. Belo e iluminador comentário em que se apoia a presente reflexão dominical.
A novidade de Jesus apresenta-se em tons de arco-íris: O valor da consciência informada; a lei ao serviço da vida; o imperativo de defender o humano de cada pessoa e de todas; a indignação como reacção à falsidade imposta e à sua indignidade; o saber gerir o tempo com os seus ritmos: reconhecer Jesus como Senhor. E o arco-íris brilha na harmonia do conjunto das suas cores. Tratamos destes pontos com um olhar cristão - outros se podem facilmente destacar. Ainda que brevemente, fazemos algumas considerações.
A consciência é o santuário de Deus em cada pessoa. A sua dignidade sai reforçada com esta presença amiga e benfazeja, iluminadora e conselheira. Esquecê-lo é sujeitar-se ao risco da sua dimensão subjectiva, facilmente influenciável pela disposição anímica ou gosto espiritual, de circunstância. Recordar esta verdade encorajante é memória saudável e certeza ética de fidelidade crescente.
A lei ao serviço da vida e de tudo o que a qualifica na sua dignidade inviolável. Sem referência à pessoa e ao seu bem maior (o bem comum), a lei corre o risco de ser desajustada e, por vezes, iníqua. Em qualquer das suas formulações, na área da educação e das comunicações sociais, no campo político e económico, na esfera religiosa. A sensibilidade pessoal e a opinião pública estão muito despertas para esta realidade. E ainda bem! Urge, por isso, a prática de uma atenção lúcida e crítica ao ambiente cultural e religioso que nos envolve e condiciona. Quem tem dúvidas sobre este assunto?! De contrário, o humano que há em nós pode ser desvitalizado, adulterado e “vendido” como a última novidade.
A indignação ética perante a falsidade é um dos maiores imperativos humanistas e cristãos. Sempre. Mas sobretudo nos nossos tempos. Jesus dá o exemplo ao sentir-se espiado pelo bem que faz, pela novidade de que é portador, pelo proceder contra-corrente. Na sinagoga e no templo. Perante a obstinação dos “iluminados” e duros de coração. Indignação a todos os níveis, sempre que a mentira se sobrepõe à verdade e adquire livre circulação. Indignação consequente que promova os valores que são resposta ao que se denuncia.
Saber gerir o tempo e seus ritmos diversificados é, sem dúvida, outro grande contributo humanizante. “O quotidiano é o que nos revela mais intimamente”, afirma Michel de Certeau no seu ensaio dedicado à antropologia do quotidiano e ao levantamento dos seus sinais (Tolentino de Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, p. 31). E este padre poeta e teólogo aconselha-nos a estar sentados à soleira do instante onde Deus nos pode surpreender e encontrar e lembra que “Jesus reconfigura o tempo partindo de outro olhar. O tempo da gramática de Jesus é o momento como oportunidade, ocasião para ser no aqui e no agora, mas em diálogo inseparável com o tempo de Deus. O instante, este instante não é apenas uma porção de vida que passa. Temos, por isso, de plasmá-lo como lugar de encontro, encarando a plenitude não como uma utopia inalcançável, mas como um convite” pág 53.
O sonho de Deus reveste o dinamismo de um projecto em realização na história: tem o seu começo quando nos alvores da criação Deus vê que tudo era bom e belo, com particular relevo para o par humano, homem e mulher; e assim abre novos horizontes ao tempo: trabalho oneroso e ócio gratuito e contemplativo, cuidado da terra e dos seus frutos e alegria de ser dom oferecido à felicidade dos outros, amor de redenção de limites e falhas/pecados, como em Jesus de Nazaré, o Senhor do Sábado feito doação até ao fim; esperança de transformação radical que, pela ressurreição, abre os horizontes da plenitude, da consumação final.
A liturgia de hoje deixa-nos perante um grande desafio que é apelo: Valorizar e santificar o domingo como o dia do Senhor”na consciência de que o futuro da fé e da Igreja passa, de modo particular, pela capacidade dos cristãos viverem o domingo, de santificarem o tempo”. (Manicardi, p. 105) E, assim, de sermos agentes de humanização da sociedade e da família, do negócio honesto e útil e do lazer fruitivo, do belo e da bondade, do instante aberto e do tempo, solar da eternidade.
Georgino Rocha