sexta-feira, 15 de junho de 2018

Novos cardeais para um novo papa

Anselmo Borges

«Impõe-se uma educação em todos os domínios para a autonomia e a responsabilidade, pois frequentemente o que se deu foi a infantilização das pessoas»


Francisco sabe que não é eterno e precisa de preparar a sucessão de tal modo que não haja volta atrás nas reformas que iniciou, pelo contrário, que continuem e se aprofundem, para que o Evangelho seja o que é e deve ser, por palavras e obras: notícia boa e felicitante para todos.
Tudo indica que este é o intuito da criação de novos cardeais no próximo dia 29. Então, os cardeais eleitores passarão a ser 125, dos quais 59 criados por Francisco, 46 por Bento XVI e 18 por João Paulo II. Como observa Jesús Bastante, os cardeais "franciscanos" serão quase metade dos participantes num futuro conclave, mas, dentro de um ano, uma vez que mais dez deixarão de ser eleitores, por causa da idade, a maioria será absoluta. Por outro lado, o Colégio Cardinalício é cada vez mais universal.
Entre os novos cardeais, está o amigo e antigo colega de Universidade, António Marto, bispo de Leiria-Fátima, claramente "franciscano" e favorável à reforma da Igreja: "A reforma é necessária e é para levar para a frente", diz. Uma profunda e gigantesca reforma, digo eu. Em duas vertentes, que se interpenetram: a da conversão pessoal e a institucional.
Quanto à conversão e nas palavras do novo cardeal, A. Marto, que escolheu como lema para bispo "servidor da vossa alegria": "Porque para a maioria das pessoas, a fé parece um fardo a suportar e não a alegria de viver com uma presença querida de Deus--Amor." Este é o núcleo: a fé cristã não é uma obrigação, tem de ser uma exaltação, com todas as consequências. Cada um, cada uma tem de perguntar a si mesmo, a si mesma: o Evangelho é bom para mim? E só se a resposta for positiva é que se sente e vive que a sua mensagem deve ser entregue aos outros. Cá está: uma Igreja evangélica, simples, pobre, de todos, a começar pelos mais frágeis e abandonados, não autorreferencial, mas aberta, dialogante, não museu, independente do poder... Afinal, "o que o Papa propõe é uma Igreja mais evangélica. Não propõe nada de extraordinário". O que é verdadeiramente extraordinário é o Evangelho.
Daqui decorre tudo o resto. Para a pedofilia só pode haver tolerância zero, como Francisco tem feito, com todas as consequências. Por exemplo, depois de enganado, mandou investigar o que se passou no Chile, convocou os bispos, que acabaram por apresentar a demissão em bloco, pediu perdão e está a receber as vítimas. Quanto ao Banco do Vaticano, o procedimento tem de ser exactamente o mesmo.
Se a Igreja se auto-evangelizar, seguir-se-á daí a urgência de profundíssimas reformas institucionais. Logo de entrada, um exemplo: na criação dos cardeais, está presente, nas vestes, nas insígnias, uma ostentação que em nada condiz com a simplicidade do Evangelho. No conclave para a eleição do novo papa, assistiremos à entrada para a Capela Sistina só de cardeais, todos homens, de idade, sem família, que vão escolher um deles para presidir à Igreja universal. Ora, o maior número de membros da Igreja são mulheres. Onde estão elas representadas?
A Igreja somos todos, o Povo de Deus. Mas, de facto, o que há é uma divisão em duas classes: o clero e os leigos. Assim, face ao modelo actual de uma Igreja piramidal com um papa de poderes quase ilimitados, uma Igreja "gerontocrática, masculina, clerical", com mais de 1200 milhões de membros, mas onde o poder de decisão está, em última instância, nas mãos de poucos: o Papa, os bispos e a burocracia da Cúria, o sociólogo católico Javier Elzo propõe outro modelo para a Igreja do século XXI: "Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, cada nó com um relativo, mas real, nível de autonomia, nós inter-relacionados entre si e, todos eles, religados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. No Vaticano (ou noutras partes do planeta), todos os anos se reuniria, em Sínodo, após uma selecção o mais democrática possível, uma representação universal de bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos de ambos os sexos, membros da Cúria, todos sob a presidência do Papa, para debater sobre a situação da Igreja no mundo e adoptar, se for o caso, as decisões pertinentes. Decisões que, em determinadas circunstâncias, obrigariam o próprio Papa." Entre as questões a debater, estarão a inculturação do Evangelho, novos ministérios, o diálogo ecuménico, o diálogo inter-religioso, os seminários e a formação dos padres, problemas de bioética, da justiça, da paz mundial, das novas tecnologias...
É urgente resolver a situação das mulheres na Igreja. Afinal, onde está no Novo Testamento a impossibilidade de elas poderem presidir à celebração da Eucaristia?; com algum humor: se valesse o argumento de que na Última Ceia Jesus só ordenou homens, dever-se-ia ir às últimas consequências: a Igreja deveria ordenar apenas homens judeus. E há a questão dos jovens: mais de metade dos jovens europeus já não acreditam em Deus... Independentemente de se saber, segundo J. Elzo, que, correspondendo também à sociedade em que vivem, "há dados comprovados que dizem que 80% (se não mais) dos sacerdotes e bispos africanos têm uma vida como qualquer outro africano", é preciso pôr termo à lei do celibato obrigatório, pois a Igreja não pode impor como lei o que Jesus entregou à liberdade. Impõe-se uma educação em todos os domínios para a autonomia e a responsabilidade, pois frequentemente o que se deu foi a infantilização das pessoas. E que as liturgias sejam belas, meu Deus, e as homilias preparadas e inteligíveis. Ter coragem para rever e actualizar na doutrina: por exemplo, quanto ao pecado original, à virgindade de Maria, à interpretação sacrificial da Eucaristia, a expressões como "desceu aos infernos", "ressurreição da carne"...

Anselmo Borges no Diário de Notícias 

Padre e professor de filosofia

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