sexta-feira, 29 de junho de 2018

Dizer a verdade a Jesus, cura e liberta

Georgino Rocha

Jesus é recebido por uma grande multidão que o aguardava após a travessia do Lago de Tiberíades. Enquanto se detém à beira-mar, chega Jairo, chefe da sinagoga local. Vem muito aflito. A sua filha está a morrer. Procura ajuda, a última, pois as outras não haviam resultado. Ao ver Jesus, suplica-lhe com insistência: “Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva”. E Jesus foi com ele, acompanhado pela multidão que o apertava, afirma a narração de Marcos.

Que cena maravilhosa! Jesus, sem guarda-costas, completamente à vontade, no meio da multidão. A sofrer empurrões de todos os lados. A olhar pessoalmente cada pessoa. A atender as urgências inadiáveis. Sem pensar em si ou na sua comodidade, sem medir perigos nem distâncias. Movia-o a paixão por aliviar o sofrimento humano, por enxugar lágrimas sentidas, por salvaguardar a vida. Que exemplo estimulante nos deixa como legado em herança.

No caminho, acontece o inesperado. A surpresa vem de uma mulher que sofría de fluxos de sangue, de feridas secretas, íntimas. Está “nas últimas”. Havia tentado tudo. Havia gasto o que possuía. E o resultado era nulo. Mas o seu coração não dormia e uma secreta confiança lhe advinha de Jesus de Nazaré de quem ouvira falar. Decidida, lança a aventura, quebrando todas as barreiras: a dos discípulos que rodeavam o Mestre, a das leis higiénicas e religiosas que proibiam o andar no meio das outras pessoas, a comitiva de Jairo que, apressada, guiava Jesus para casa.

A mulher sofrida mostra um proceder humano admirável. Proceder que São Gregório de Nissa, no livro sobre «a perfeição da vida cristã» sistematiza deste modo: “Há três coisas que revelam e distinguem a vida do cristão: a acção, a palavra e o pensamento. Entre estas, vem em primeiro lugar o pensamento; em segundo lugar, vem a palavra, que manifesta e exprime, por meio dos vocábulos, o pensamento concebido e impresso no espírito; depois do pensamento e da palavra, vem a acção, que põe em prática o que o espírito pensou”. Bela síntese que brilha na atitude desta mulher: pensa que pode surgir uma oportunidade; dá-lhe nome pessoalizado; e, depois, age de acordo com o “plano” gizado. É tão rica esta cena que nos vamos deter nos seus elementos principais.

A mulher preocupa-se com a cura da fonte do seu sofrimento. Não basta o recurso ocasional para remediar os seus efeitos. Indica claramente um caminho a percorrer para os cuidadores de saúde, voluntários e profissionais, para a medicina convencional ou alternativa. Manifesta, sem alarde, que muitos tratamentos levam a consumir os bens das pessoas sem resultado e a beneficiar quem assume o encargo de os fazer convenientemente. Denuncia, sem o dizer, as situações desumanas que ocorrem nesta área tão sensível de uma sociedade humanizada que quer garantir o serviço de saúde a todos/as.

A mulher manifesta o valor da saúde integral: a do físico e emocional, a da mente e relacional, a do ambiente e espiritual. Saúde integral que se enraiza numa correcta compreensão do corpo humano.

O Papa Francisco, ao falar, no dia 25 de Junho de 2018, na «Academia para a Vida» lembra a “sabedoria que deve inspirar a nossa atitude” chamada a considerar a qualidade ética e espiritual da vida em todas as suas fases. E designa esta atitude por “ecologia humana”. E prossegue referindo-se ao nosso corpo “que nos situa numa relação directa com o ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do próproo corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum, enquanto uma lógica de domínio sobre o próprio corpo se transforma numa lógica, às vezes subtil, de domínio sobre a criação”. E, em jeito de conclusão, o Papa adianta: “Aprender a receber o próprio corpo, a cuidar dele, e a respeitar os seus significados, é essencial para uma verdeira ecologia humana. Também a valoração do próprio corpo na sua femineidade ou masculinidade é necessária para se reconhecer a si mesmo no encontro com o diferente”( Laudate Si, nº 155).

A mulher provoca o silêncio dos acompanhantes de Jesus. Tal o inusitado. Silêncio que é indiciador do que havia surgido: um novo olhar sobre a mulher, o corpo humano e sua condição sexuada, sobre a pessoa como indivíduo aberta à relação de reciprocidade masculina e feminina; um novo olhar sobre a sociedade de seres humanos iguais em dignidade, diferentes em capacidades e complementares no desempenho de funções; um novo olhar que emerge do olhar de Jesus que vê a multidão que o rodeia e aperta, identifica a mulher que o tocou e, assustada, vem dizer-lhe a verdade do que havia acontecido.

A mulher empreende a sua ousadia, após dialogar com a sua consciência, de fazer o balanço entre a necessidade e o risco, entre a dor da inibição e a alegria da exposição, da previsível satisfação. Grande atitude: a cautela e a ponderação dão as mãos e aconselham a melhor opção. Avançou e acertou. E recebeu de Jesus o reconhecimento público da sua ousadia: “Minha filha, a tua fé te salvou”.

Marcos, o narrador, não indica nada sobre o que teriam dito os discípulos, os amigos de Jairo, os outros acompanhantes. O relato deixa em aberto essa atitude para as gerações seguintes poderem parar, saborear, quebrar barreiras, mergulhar na bondade de Jesus que, prossegue, incansavelmente nos caminhos da missão, a testemunhar um rosto diferente do nosso Deus que se espelha no cuidado integral do corpo humano. Prossegue também por meio de nós, como cidadãos cristãos, na Igreja e na sociedade.

Georgino Rocha

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