«Estamos no mês dos Santos Populares: a 13, Santo António, a 24, S. João e, a 29, S. Pedro. Esses santos mais antigos são valores seguros. Mesmo numa era secular e num Estado laico, as autarquias compreendem que são os santos da religião popular que marcam as festas do povo»
1. Não entendo nada do jogo do “monopólio”. Parece que é guiado por uma lógica económica muito simples: para uns jogadores ficarem ricos, os outros vão à falência.
Não pretendo encontrar aí uma analogia para a relação entre as religiões, mas sempre ouvi dizer aos críticos do monoteísmo que a sua vitória foi um golpe muito duro no pluralismo religioso da antiguidade. Um Deus único não poderia tolerar concorrentes.
Não é essa questão, cheia de falácias, que pretendo abordar nesta crónica. A palavra Deus encobre significações muito diferentes. Lembrei-me desse jogo ao ler uma recente declaração do actual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Luis Ladaria. Tenta ressuscitar a Carta Apostólica de João Paulo II – Ordinatio sacerdotalis – para reafirmar que o jogo do sacerdócio ministerial foi ganho pelos homens e a falência sacerdotal das mulheres é irremediável. A referida Carta defendia que o sacerdócio ministerial – de padres e bispos – é monopólio masculino e definitivo: sempre assim foi e sempre assim será.
Compreendo o zelo do Prefeito L. Ladaria. Perante a arremetida teológica, cada vez mais insistente, contra o monopólio masculino, reagiu segundo a sua função policial: lembra que a lei tem de ser respeitada. Mas não lhe pertencia repetir que esta nunca poderá ser alterada. Que um Papa tenha dito isso, obriga a um acurado reexame do que ele entendia por Igreja e da sua concepção dos seus poderes no futuro.
A primeira interrogação é esta: as mulheres não serão Igreja? Não conheço nenhum movimento de mulheres satisfeitas com a sua menoridade eclesial. O sujeito Igreja não será constituído por todas as pessoas baptizadas? Ou será que alguém descobriu na tradição eclesial um Baptismo próprio para homens e outro para mulheres? S. Paulo ficaria indignado com essa loucura [1].
O Papa Francisco, quando chegou ao Vaticano, já tinha o terreno armadilhado com Cartas Apostólicas semeadas de sentenças definitivas, enunciando posições doutrinais que nenhum outro papa ou concílio poderia modificar. Essa arrogância denuncia um estilo, mas talvez não uma exigência divina.
Na Praça de S. Pedro, na reflexão sobre o sacramento do Crisma, o estilo de Bergoglio é muito diferente: a missão da Igreja no mundo procede através da contribuição de todos aqueles que fazem parte dela. Alguns pensam que na Igreja existem patrões: o Papa, os bispos, os sacerdotes e depois os outros. Não: todos nós somos Igreja! Todos temos a responsabilidade de nos santificarmos uns aos outros e de cuidarmos de todos.
Todos nós somos Igreja! Cada qual tem a sua função, mas, repito, todos nós somos Igreja! Com efeito, devemos pensar na Igreja como num organismo vivo, composto por pessoas que conhecemos e com as quais caminhamos e não como numa realidade abstracta e distante.
A Igreja somos nós que caminhamos, a Igreja somos nós que hoje nos encontramos nesta praça. Nós: esta é a Igreja. A Confirmação vincula à Igreja universal, espalhada pela terra inteira, mas compromete activamente os crismandos na vida da Igreja particular à qual pertencem, tendo como cabeça o Bispo, que é o sucessor dos Apóstolos.
O jogo deste Papa não é o do monopólio. A sua Igreja não é a dos patrões.
2. Estamos no mês dos Santos Populares: a 13, Santo António, a 24, S. João e, a 29, S. Pedro. Esses santos mais antigos são valores seguros. Mesmo numa era secular e num Estado laico, as autarquias compreendem que são os santos da religião popular que marcam as festas do povo. Quem reconfigura esses santos são os seus devotos, sem pedir licença a ninguém. Têm um traço comum. A sua ocupação e preocupação é a vida e a alegria das populações. A saúde e a guarda das pessoas e dos animais, o êxito das sementeiras e das colheitas, a esperança contra os excessos da seca e da chuva, das ameaças da fome, da peste e da guerra. As promessas, as romarias, as peregrinações, o canto ao desafio e as danças dos grupos e das bandas, a partilha dos merendeiros e de uma boa pinga são a linguagem dos céus e da terra, simbolizados no fogo que leva o mundo às alturas, não o fogo dos incêndios.
Os santos populares e as alminhas eram gente de casa com quem se podia contar na saúde e na doença, na tristeza e na alegria. É gente do lugarejo, é gente da freguesia, é gente do Conselho, é gente do mundo todo. Fez-se uma imagem de santos canonizados, fixos nos altares, depois de processos canónicos, mais ou menos morosos, para apanhar pó. Os Santos Populares foram canonizados pelo povo. Esses estão sempre no activo, venerados ou a quem se pede contas pelos desleixos.
Deus não vive no céu e numa eternidade aborrecida e os que vão para o céu também não se vão aborrecer. Todos activos.
Pouco importa a biografia histórica de cada um desses santos preferidos. Por exemplo, de Sto. António, teólogo e pregador, ficou muito pouco. Sempre com o menino ao colo, existem poucas imagens de Santo António cansado, de menino pela mão. Conta-se tanto com ele que, no dia ou na noite em que ele não atende os seus devotos, é posto de castigo.
Quem acompanhar as orações a este santo, no seu Mensageiro, tem sempre uma página que lhe é dedicada. O estilo não varia muito: "Meu Santo Amigo, já me salvaste da morte. Agradeço reconhecido. Ajuda a minha família e em especial a minha filha mais velha, tu sabes quem é. Que os médicos que a seguem descubram de que padece, os assuntos da mente e do espírito são complicados. Mas confio em Ti, meu Santo António. As bênçãos de Deus para quem mais precisar. Ámen. José."
3. Os santos populares não se passeiam todos em andores. O Papa Francisco prefere ver a santidade nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e nas mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Vejo aí a santidade da Igreja militante. É a santidade "ao pé da porta", daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus ou, por outras palavras, a classe média da santidade.
A santidade não consiste em ter visões, recitar orações elevadíssimas ou mostrar cara de santinho. Não é reserva da terceira idade ou de jovens que a esperam sentados. A santidade do jovem é ir em frente, ser desassossegado [2].
Cristo não se reconhece em nenhum jogo de monopólio da santidade. O seu empenhamento é levar todos os seres humanos, seja qual for a sua idade, povo, cultura ou religião à plenitude da vida.
Os santos não são concorrentes, são associados, todos membros do seu corpo místico.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Gl. 3, 23-29
[2] As referências aos santos e à santidade foram inspiradas em Gaudete et Exsultate, do Papa Francisco, 2018, e nas recentes Audiências Gerais de 6 e 13 de Junho