Anselmo Borges |
No passado dia 5, celebrou-se o segundo centenário do nascimento de Karl Marx, o filósofo, sociólogo e economista cuja obra, para o bem e para o mal, contribuiu de modo decisivo para a mudança da história do mundo. O outro Marx é o cardeal Reinhard Marx, actual arcebispo de Munique e presidente da Conferência Episcopal Alemã, especialista na Doutrina Social da Igreja, um dos conselheiros do Papa Francisco, que foi bispo de Trier, onde Karl Marx nasceu, e que escreveu uma obra bestseller, muito notada também pelo título, o mesmo da do seu homónimo, Das Kapital (O Capital). Ele mesmo confessa que João Paulo II se lhe dirigia com graça como il nostro marxista (o nosso marxista).
Tanto no livro, publicado em 2008, como nas entrevistas concedidas ao Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung e ao Rheinische Post online, por ocasião dos 200 anos do nascimento do seu homónimo, o cardeal, que não é marxista, manifesta profundo interesse por Karl Marx e os seus escritos, que chega a considerar "fascinantes" e com uma "grande energia", neles "há uma inspiração, um ímpeto revolucionário". "Sem Karl Marx, não haveria uma Doutrina Social da Igreja".
Não deixa de impressionar. Quase metade da humanidade chegou a viver sob regimes políticos inspirados também em Karl Marx e, do ponto de vista ideológico, nunca uma filosofia influenciou tão rapidamente tantos. Por outro lado, o comunismo é, de facto, responsável por mais de 100 milhões de mortos. Marx não é o responsável directo por todos os crimes cometidos, tanto mais quanto, segundo a sua doutrina, a revolução não deveria dar-se nem na Rússia nem na China... Mas lá está esta palavra mortal nos famosos Manuscritos de 1844: "O comunismo é a solução do enigma da história e sabe que o é." Assim, Marx não é directamente culpado pelas terríveis tragédias cometidas por muitos dos seus sequazes, mas, como me disse o filósofo J.M. Domenach, "A peste estalinista está na lógica do marxismo a partir do momento em que uma filosofia que pretende ser uma explicação científica e completa da história toma o poder".
O que pensa o cardeal sobre as teorias de Marx e os crimes cometidos em seu nome? "Ele não pode ser absolvido pura e simplesmente em relação ao que se seguiu, mas também não tem de responder por tudo o que na sequência da sua teoria foi feito como marxismo, incluindo os Gulags de Estaline. Tendo terminado o socialismo real na Europa, talvez seja possível um olhar mais imparcial. Ele é um pensador que marcou a nossa época, também no negativo." É preciso notar que nos seus escritos pode ser encontrado aqui e ali algum "pensamento totalitário" e um colectivismo que não tem em conta o indivíduo: "Para Marx, trata-se apenas do género humano. Quase não toma em consideração o indivíduo. Para nós, cristãos, a pessoa é central. Não podemos propor-nos nenhum objectivo à custa do homem. O homem enquanto pessoa tem de estar sempre no centro, e precisamente cada pessoa individual e concreta." Aliás, o Papa Francisco, num prefácio escrito para o último livro de Bento XVI, que acaba de ser publicado, Liberar la Libertad. Fe y Política en el Tercer Milenio, denuncia a "pretensão totalitária" do Estado marxista e "a ideologia ateia em que se fundamenta".
Que contributos de Marx permanecem actuais?
Segundo Reinhard Marx, Karl Marx é "um analista agudo do capitalismo. Ele viu correctamente: quando os interesses da valorização global do capital se tornam o factor determinante do desenvolvimento, o capitalismo entra em aporias insolúveis. Por outras palavras: quando se combina o imperativo tecnológico - "o que é possível tecnicamente deve-se fazer" - com o imperativo económico -"o que gera lucros não deve ser impedido" - e se liga tudo com a moral do mal menor, isso leva ao abismo. Muitas coisas que ele apresentou só agora as podemos ver em toda a sua amplidão. Hoje começamos a ver os efeitos sociais, políticos e ecológicos que o capitalismo mundial, global e desenfreado tem. E a doutrina social católica nunca negou a análise marxista do capitalismo e das ameaças que dele decorrem. Karl Marx obrigou a pensar problemas que não estão resolvidos. Isto vale também para o carácter fetichista da mercadoria e a alienação."
Evidentemente, Karl Marx não é um "Padre da Igreja". Mas "a Doutrina Social da Igreja sempre o estudou intensamente e daí a afirmação do jesuíta O. von Nell-Breuning: "Estamos todos aos ombros de Karl Marx." A sua posição foi sempre um ponto de discussão para a doutrina social católica, a maior parte das vezes em rejeição crítica, mas também em interrogação: "O que é que ele quer exactamente, o que move este homem? A sua análise é correcta?"." Também se deve a Marx perceber que "o mercado não é tão inocente como se apresenta nos manuais dos economistas; por detrás há enormes interesses". Ele mostrou que "os direitos humanos, sem partilha material, permanecem incompletos", exigindo-se, portanto, "atender às relações reais concretas". Ao acentuar o empírico, "ele é um dos primeiros cientistas sociais que devem ser levados a sério".
"Um capitalismo sem humanitariedade, solidariedade e justiça, não tem moral nem futuro." Para o cardeal Marx, tornou-se claro que nos precipitamos para o abismo, quando "se excluem do mercado a moral e a ética e se pensa que se pode renunciar a uma ordem política do Estado que mantenha os movimentos do mercado dentro de regras ao serviço do bem comum". É necessária uma nova ordem política mundial, tendo-se imposto o conceito de Global Governance, para criar um novo sistema de instituições e regras no contexto dos desafios globais. Como aqui tenho sublinhado, desafio maior para o nosso tempo é superar a inadequação entre os mercados que são globais e a política que é nacional, quando muito, regional.
Anselmo Borges no DN
Padre e professor de filosofia