Anselmo Borges no DN
Emmanuel Macron |
1 O Collège des Bernardins tornou-se um lugar de cultura para grandes encontros e debates em Paris. Foi lá que, no passado dia 9, o presidente francês, Emmanuel Macron, falou, a convite da Conferência dos Bispos de França, para 400 personalidades representando o mundo católico francês. E fez um discurso inédito, verdadeiramente histórico, sobre a relação da Igreja e do Estado, digno de quem, para lá de toda a sua outra preparação académica, estudou Filosofia com um dos grandes filósofos do século XX, Paul Ricoeur. Um discurso obrigatório para qualquer político que, acima da intriga política e do enredo em estratégias rasteiras de interesses pessoais e partidários, tenha aspiração a estadista. Precisará de conseguir mais de uma hora de silêncio e reflexão, pois o discurso é longo. Uns breves apontamentos.
2 O discurso é perpassado pela necessidade de "reparar" o vínculo entre o Estado e a Igreja que "se deteriorou", o apelo a maior empenhamento dos católicos na política, a reflexão sobre a união do temporal e do espiritual.
2.1. As raízes cristãs da Europa são uma "evidência histórica". Aliás, "não são as raízes que nos importam. O que importa é a seiva", e está "convencido de que a seiva católica deve contribuir ainda e sempre para fazer viver a nossa nação" e a Europa. Aqui, coloca-se a questão nuclear das relações entre a Igreja e o Estado, e Macron foi exemplar: "Eu considero que a laicidade não tem certamente por função negar o espiritual em nome do temporal nem arrancar das nossas sociedades a parte sagrada que alimenta tantos dos nossos concidadãos. Como chefe do Estado, eu sou o garante do direito de crer ou de não crer, mas não sou nem o inventor nem o promotor de uma religião de Estado que substitui a transcendência divina por um credo republicano." Já em Janeiro, na apresentação de cumprimentos às autoridades religiosas, tinha criticado uma concepção de laicidade confundida com laicismo, que pretende uma espécie de "vazio metafísico" e confina a religião à esfera privada: "A República não pede a ninguém que esqueça a sua fé", disse então.
Por outro lado, é necessário respeitar os âmbitos das duas esferas, pois não compete à Igreja dirigir a acção política. Por exemplo, quanto às questões de bioética, Macron decidiu que o debate deve ser enriquecido com a posição de responsáveis religiosos e, "ao escutar a Igreja, não encolhemos os ombros. Escutamo-la com interesse, com respeito e até podemos fazer nossos muitos dos seus pontos de vista. Mas esta voz da Igreja, sabemo-lo (os bispos e eu), não pode ser imperativa (injonctive), só pode ser questionadora". Nestes temas e noutros, como os que se referem aos refugiados, questões sem soluções evidentes, impõe-se conciliar os princípios e o real, com a mediação da "prudência", "numa tensão constante", assumindo um "humanismo realista". Não vivemos no Estado de cristandade, mas a Igreja também não pode ser reduzida ao âmbito da privacidade e dos seus templos. "O Estado e a Igreja pertencem a duas ordens institucionais diferentes, que não exercem o seu mandato no mesmo plano", mas "ambas exercem uma autoridade e mesmo uma jurisdição". A partilha não deve atender apenas à "solidez de certas certezas". "Devemos ousar fundar a nossa relação na partilha de incertezas, isto é, a partilha das perguntas, e de modo particular as questões do homem."
2.2. Lamentou que "durante muitos anos os políticos tenham desconhecido profundamente os católicos de França", e confessou que ele, "por razões ao mesmo tempo biográficas, pessoais e intelectuais, tem uma ideia mais alta dos católicos". O questionamento da Igreja Católica "tem interesse para toda a França porque assenta numa ideia do homem, do seu destino, da sua vocação". "A República espera muito dos católicos. Espera exactamente que lhe façais três dons, três dádivas: o dom da vossa sabedoria, o dom do vosso compromisso, o dom da vossa liberdade."
A sabedoria. "Temos de dar um rumo à nossa acção, e este rumo é o homem. Ora, não é possível avançar nesta via sem cruzar o caminho do catolicismo." "Vós considerais que o nosso dever é proteger a vida, em particular quando essa vida é indefesa." Impõe-se um diálogo humanista entre a Igreja e o Estado. "Escutamos uma voz que retira a sua força do real e a sua clareza de um pensamento em que a razão dialoga com uma concepção transcendente do homem." "A parte católica da França, no horizonte secular, instila a questão intranquila da salvação."
O compromisso. "O que agrava o nosso país é o relativismo. E até o niilismo." Mas "vós sois hoje uma componente maior desta parte da nação que decidiu ocupar-se da outra parte": os doentes, os que vivem na solidão, os prisioneiros, os vulneráveis, os abandonados. "Mas eu vim fazer-vos um apelo a mais. Penso que a política precisa da vossa energia. Ela precisa da energia de quem dá sentido à acção e coloca no seu coração uma forma de esperança."
A liberdade. "A primeira liberdade que a Igreja pode oferecer é ser intempestiva. Ela deve ser um daqueles pontos fixos de que a nossa humanidade tem necessidade no meio deste mundo oscilante. Espero que a Igreja nos ofereça também a liberdade de palavra, que tem muitas vezes a particularidade de lembrar os deveres do homem para consigo, para com o próximo, para com o nosso planeta." Liberdade ainda de "iniciar, manter e reforçar o diálogo livre, de que o mundo tanto precisa, com o islão. Não há nada mais urgente hoje do que aumentar o conhecimento mútuo dos povos, das culturas e das religiões". "Por fim, há uma liberdade que a Igreja deve oferecer-nos: a liberdade espiritual. Os nossos contemporâneos, crentes ou não, têm necessidade de ouvir falar de uma outra perspectiva sobre o homem, diferente da perspectiva material. Precisam de matar uma outra sede: a sede de absoluto".