Georgino Rocha
JUNTOS, DISCERNIR
«Só a realidade sentida com compaixão nos faz assumir como nossa a causa dos outros, sobretudo se estão em grave necessidade. E nos impele a querer ajudar a resolvê-la por razões explícitas: a comum humanidade, a solidariedade, a coerência entre o que se diz como mensagem e o que se faz como prática, a vontade positiva de encontrar uma solução ética viável. Outras há, com certeza. É indispensável ter consciência das razões do nosso agir e explicá-las a fim de motivar as pessoas envolvidas.»
O recurso ao discernimento como ciência de acção pastoral vem merecendo atenção crescente. O mesmo acontece noutras áreas do agir humano. A complexidade das situações a urgir respostas acertadas e oportunas, a consciência da dignidade das pessoas envolvidas ou a envolver, o impacto das tecnologias e dos processos educativos, a aplicação e organização racional de recursos, a par de muitos outros factores suscitam uma nova sensibilidade social e apostólica. E assim, ganha força o aforismo antigo: O que a todos diz respeito por todos deve ser resolvido. Como? É pergunta que deixa em aberto o desafio de saber organizar a participação a todos os níveis em que a sociedade se organiza e a Igreja se configura. O Espírito Santo quer precisar das nossas mediações humanas para agir livremente.
O recurso à experiência dos povos, designadamente entre nós aos estudos bíblicos, constitui uma fonte de inspiração que abre horizontes rasgados a quem “navega nestas águas”. Não falta literatura qualificada sobre esta matéria. O programa pastoral 2017/18 da diocese de Aveiro tem como referência fundante o texto de Marcos 6, 34-44. Texto com uma densidade humana rica e grande alcance simbólico. Contém o núcleo germinal do discernimento como acção pastoral concertada, organizada. Com natural espontaneidade e alguma reflexão, surgem alguns passos que convém destacar.
Jesus e os acompanhantes deparam-se com uma situação preocupante: A multidão, em emergência alimentar. Face a isto, a pergunta normal será: Como se manifesta e configura? Que se observa de mais relevante? O texto descreve as suas principais características: As pessoas estavam como ovelhas sem pastor, isto é entregues a si mesmas, expostas a tudo, cansadas, sem alimento. Mais elementos são apresentados pelos outros evangelistas. Só a partir do conhecimento da realidade é que se pode avançar na acção, de modo inteligente. Para conhecer a realidade é preciso ver a verdade, sem lentes redutoras ou coloridas, e deixar-se envolver pela compaixão. Quanto trabalho espiritual se torna necessário para cultivar a liberdade interior e a lucidez mental! Quanta arte se exige para gerir emoções precipitadas pelo “já pensei e agora dizei vós”, as generalizações abstractas e aproximações deformantes! A referência a “casos” parecidos nesta fase do processo pode ser perigosa e redutora. A limpidez do olhar e a abertura à perspectiva do outro constituem regras de ouro de todo o discernimento.
Só a realidade sentida com compaixão nos faz assumir como nossa a causa dos outros, sobretudo se estão em grave necessidade. E nos impele a querer ajudar a resolvê-la por razões explícitas: a comum humanidade, a solidariedade, a coerência entre o que se diz como mensagem e o que se faz como prática, a vontade positiva de encontrar uma solução ética viável. Outras há, com certeza. É indispensável ter consciência das razões do nosso agir e explicá-las a fim de motivar as pessoas envolvidas.
O processo de discernimento pode ser influenciado por factores exteriores. No texto bíblico mencionam-se o cair da tarde e o local deserto. Mas há também a pressão interior que se manifesta no conselho dos discípulos a Jesus: despede o povo; ele que se arranje; vá aos campos e às povoações. E o pobre povo ficaria por aí errante e faminto. Esta não é a atitude cristã. Pelas razões indicadas e por outras que fazem parte da mensagem cristã. Esta passagem é tão elucidativa e interpelante! Constitui um verdadeiro acicate para o nosso (possível) cansaço pastoral, fonte de desinteresse antes do fim do processo de ajuda. Também é eloquente a atitude de Jesus. Podia sozinho resolver a questão. Fê-lo tantas vezes! Mas não. A habilitação dos discípulos passa por outra atitude.
Jesus é taxativo: “Vós é que tendes de lhes dar de comer”. E o diálogo prossegue com pergunta e resposta. Fase de aprofundamento da opção. O problema agora é nosso. A esperança está posta em nós. Não podemos/devemos defraudar as pessoas, nem substituí-las simplesmente. Todos têm capacidades, ainda que reduzidas. Só, sendo envolvidas, podem desenvolver-se e estar aptas para assumir os desafios da vida.
Vencido o medo de gastar da bolsa comum, sempre paralisante, os discípulos cooperam generosamente. Descobrem um rapazinho com o farnel. Motivam-no para que o ceda a Jesus. Assim acontece. Trazem-no e fazem-lhe a entrega. Que maravilha encontramos nesta ocorrência! Um rapazinho, perdido na multidão, converte-se em sinal de esperança para todos. E faz a partilha do que lhe seria indispensável. Vale a pena ponderar bem onde podem estar os recursos para o discernimento, que facilitam uma opção razoável e reclamam uma organização eficaz. E fica para sempre o imperativo de acção: Ide ver o que há.
O processo está em curso. Ninguém quebra a confiança nem obstaculiza a coordenação. Jesus dá um passo mais: Manda que organizem a multidão em grupos de pessoas; sentadas; confiantes. “Toma os cinco pães e os dois peixes, ergue os olhos ao céu, pronuncia a bênção, parte os pães e ia-os dando aos discípulos”. E Marcos continua, destacando a tarefa correspondente. E o mesmo ocorre com os peixes. Assim, a comida chega a cada um e todos ficam saciados. E acontece o que parecia impossível. Sem ninguém se sentir dispensado. Com o concurso de cada um. “Todos ficaram satisfeitos”. Que indicação preciosa para humanizarmos os nossos processos de comunhão eclesial e de colaboração apostólica. E nada se perde. Nem o que sobrou de tanta abundância.
O alcance simbólico do proceder de Jesus abre novos horizontes. É a Eucaristia que surge como celebração festiva em que Jesus nos associa ao seu modo de ser e de proceder. Há que ser coerentes e colher do seu exemplo a indicação prática para a nossa fidelidade criativa. O discernimento impele à acção apostólica: a multidão regressa a casa, seu primeiro espaço de vida e missão; os discípulos partem para novos territórios, além rio; Jesus recolhe-se e reza.
Com forças revigoradas, dá conta que anoitece e que os discípulos estão aflitos. O mar revolto ameaça a barca e eles correm perigo. Uma operação de salvamento era necessária. E surge uma nova oportunidade de acção concertada. De juntos, discernir a opção operativa a tomar e o caminho sequenciado a seguir.