Reflexão de Georgino Rocha
Georgino Rocha |
"Nicodemos, figura histórica, é símbolo do homem de todos os tempos, sobretudo do nosso, de quem se aventura na noite do mercado de opiniões e dúvidas e quer encontrar resposta para o sentido da vida, seus valores e sua escala de prioridades, dos/as que não abdicam do direito de fazer perguntas sobre o rumo dos acontecimentos e o cuidado da criação."
Nicodemos surge como interlocutor de Jesus. Certamente fica incomodado com o episódio do Templo. Por ser testemunha ou por ditos que lhe chegam. Incómodo que acentua a perplexidade em que vivia e o leva a ir de noite à sua procura. Incómodo que transparece na conversa que João narra e, hoje, a liturgia nos apresenta como parte do diálogo sobre o “nascer de novo” proposto por Jesus. “Como é possível nascer de novo?”, pergunta, sem rodeios, tendo no horizonte da sua dúvida o parto natural e a idade da vida. (Jo 3, 14-21). Apesar de ser mestre em Israel, de usufruir de um estatuto social elevado e de viver como crente piedoso, Nicodemos não vislumbra a nova dimensão que Jesus insinua. Mas cultivará uma relação de proximidade e de intervenção, de simpatia e de risco, como os relatos evangélicos referem repetidas vezes.
“Como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é preciso que o Filho do Homem seja levantado para que todo aquele que acredita, tenha n’Ele a vida eterna”. Jesus fala da fé e da nova realidade que provoca. No tempo presente como gérmen; no futuro definitivo, como plenitude, a vida eterna. O relato de João deixa Nicodemos na escuta atenta, no silêncio meditativo, na ponderação da novidade anunciada. Um pouco como Maria em Belém após o nascimento de Jesus (Lc 2, 19). A figura da serpente e a evocação de Moisés levam-no, certamente, à experiência do povo na travessia do deserto, às queixas e murmurações, sinal de corações transviados “que não atinam com os caminhos do Senhor”. Levam-no a avivar o alcance medicinal do olhar humano ao ver a serpente erguida que cura as feridas das mordeduras apanhadas. Levam-no a chegar à porta do mistério que só se abrirá quando Jesus, o Filho do Homem, for crucificado no alto do Calvário e deixar o coração aberto à esperança da ressurreição. “O novo símbolo da vida não é um rito mágico, mas Jesus, vítima da sua generosidade extrema”, afirma J. M. Castillo.
Elevado, Jesus faz-se a garantia de que Deus ama o mundo, de que a vida eterna está ao alcance de todos/as, de que a salvação é possível, de que a opção humana é decisiva. Elevado, Jesus faz-se luz que brilha no amor, verdade que nos humaniza, fortaleza paciente que nos anima a construir caminhos de justiça e de paz, de bondade e de beleza. Elevado, faz-se apelo a que vejamos o todo e não apenas a parte, o processo e não apenas o acto, o tempo e não somente o instante. Somos pessoas de visão rasgada, de olhar erguido, capazes de esquadrinhar os vestígios do Espírito nos atalhos da nossa comum humanidade e de alinhar o nosso comportamnto pelo rumo que nos apontam e secundar com o nosso empenho a sua acção renovadora.
Nicodemos, figura histórica, é símbolo do homem de todos os tempos, sobretudo do nosso, de quem se aventura na noite do mercado de opiniões e dúvidas e quer encontrar resposta para o sentido da vida, seus valores e sua escala de prioridades, dos/as que não abdicam do direito de fazer perguntas sobre o rumo dos acontecimentos e o cuidado da criação. Nicodemos, mestre em Israel, faz-se aprendiz, peregrino da verdade e não teme o confronto de ideias nem interpelações ousadas. Nicodemos atende à força da insatisfação e ao anelo do espírito, não cala a voz da consciência nem teme murmurações alheias, mas assume o desafio de ir à procura, de se deixar questionar, de compreender apenas uma parte do que lhe é proposto. Alcançar o todo só na vida eterna.
Nascer de novo para um olhar diferente, reflexo do encontro pessoal com Jesus Cristo realizado no santuário da consciência e celebrado na assembleia dominical; olhar diferente que brilha em atitudes éticas pautadas pelas referências que brotam da visão humanista e cristã. “Não me cansarei de repetir, afirma o Papa Francisco, estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”. (A Alegria do Evangelho 7). Sem este encontro, a prática cristã fica em aparências que desfiguram a Deus que nos ama e desumanizam o ser que nós somos. O garante é Jesus Cristo que nos fala como a amigos. Alegra-te e renova as tuas convicções.