domingo, 2 de julho de 2017

Bento Domingues — Nem Lutero nem Francisco


«O que mais me espanta não são os 500 anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal. O primeiro foi João XXIII.»

1. No passado dia 21, o Grémio Literário evocou os 500 anos “dos acontecimentos que abalaram a Europa na sequência do acto simbólico que marcou o início do movimento religioso e cultural na Cristandade e que ficou registado na História sob a designação de Reforma. Foi a 31 de Outubro de 1517 que Martinho Lutero afixou nas portas da igreja de Wittenberg as suas 95 famosas teses, que acabaram por conduzir a um cisma profundo e durável na Igreja de Roma”.
Segundo a tradição, isto aconteceu na véspera da festa de Todos os Santos. A dramatização desta data deu origem à Festa da Reforma, embora a sua fundamentação histórica seja questionada, dado que a narrativa é de Melâncton, em 1546, depois da morte de Lutero.
O V Centenário da Reforma já foi inaugurado, na Alemanha, em 2008, como a Década de Lutero.
É uma ocasião para os historiadores da cultura, da política e da teologia reexaminarem cinco séculos de história extremamente complexa e, talvez, colherem algumas lições para o nosso presente de renovados fanatismos políticos e religiosos
A Ausência de Lutero em Portugal foi o título da minha intervenção. Portugal não é a pátria de Lutero e os portugueses também não o puderam acolher no séc. XVI, nem com discernimento nem sem discernimento. Além disso, e não só em Portugal, ser bom católico era dizer mal dos protestantes e ser bom protestante era dizer mal dos papistas.
Para assinalar os 450 anos da sua morte, o Centro de Estudos de Teologia/Ciência das Religiões, da U. Lusófona, realizou um importante colóquio, cujos contributos já estão publicados. Merecem reedição. Tentei, no prefácio, explicar as razões da ausência de Lutero entre nós [1].
O P. Carreira das Neves, com o seu Lutero. Palavra e Fé, tenta preencher essa lacuna: “O tema que vamos tratar tem sido objecto de milhares de livros, artigos e pronunciamentos religiosos, políticos, sociológicos, filosóficos. Só estranha o facto de nenhum autor português ter assumido, nestes 500 anos que nos separam de Lutero, a responsabilidade de escrever sobre esta pessoa que está na origem do protestantismo luterano e das igrejas evangélicas.” [2]
Ausente em Portugal, teve mais sorte no Brasil, onde já foram publicados 12 volumes das Obras Seleccionadas de Martinho Lutero [3]. 
O luterano Artur Villares pergunta: “Cinco séculos depois, com a poeira da História a assentar e as polémicas, ódios e extremismos definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética de todos os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome de Martinho Lutero? Para muitos nada; para outros tantos, um mero revoltado, um rebelde, que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente; para outros ainda, uma figura histórica, de assinalável grandeza, um dos construtores do mundo moderno. E para os luteranos? Naturalmente que a herança de Lutero é imensa: foi o pai do alemão moderno; foi o autor de uma vasta obra teológica, que hoje abarca cerca de cem volumes; dignificou o casamento, dando ele próprio o exemplo, ao casar em 1525 com a ex-freira Catarina de Bora, de quem teve seis filhos. Compôs dezenas de hinos, reestruturando o canto congregacional na Igreja. Reafirmou o sacerdócio universal de todos os crentes e introduziu o vernáculo como língua litúrgica. Inspirou grandes mestres da música, como Bach e Mendelssohn. E tudo isto, sem dúvida, foi entrando no património das igrejas após Lutero.” [4]
O dominicano Yves Congar, investigador da obra de Lutero, concluiu que ele “é um dos maiores génios religiosos de toda a História. Coloco-o no mesmo plano que Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Pascal. [...] Ele repensou todo o cristianismo. Ofereceu-nos uma nova síntese, uma nova interpretação”. [5]

2. Não cabe nesta crónica apresentar todas as razões que fizeram de Lutero um ausente da nossa cultura, da cultura que se desenvolveu em diálogo com a Reforma. Frei Jerónimo de Azambuja (†1562), grande exegeta da Bíblia, declarou no Concílio de Trento que “em Portugal, graças à providência divina e aos cuidados do rei muito cristão, não se vislumbra qualquer sinal da heresia luterana que enche o mundo”. De facto, os contactos testemunhados de portugueses com Lutero foram escassos. Os métodos da Inquisição, o controlo dos livros nos portos e nas livrarias construíram adequadas barreiras de protecção contra o contágio luterano.
No século XVI, quando se queria insultar gravemente alguém, bastava chamar-lhe “Lutero”. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, aguentou muitas insolências de alguns cónegos, mas protestou vivamente quando o apelidaram de “Lutero”. [6]

3. Muitos passos de aproximação e de entendimento mútuo já foram dados entre católicos e luteranos. Em 1999, foi assinada a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. O Papa Francisco, na viagem ecuménica à Suécia, entre 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2016, no contexto da comemoração católico-luterana dos 500 anos da reforma protestante, assinou uma declaração comum com o presidente da Federação Luterana Mundial.
A fórmula Ecclesia semper reformanda é antiga. A Igreja, quando não vive em processo de contínua reforma, deforma-se. É da sua condição humana e cristã. Somos justificados pela graça de Deus e pecadores pelo mau uso da nossa liberdade. Para não envelhecer, é preciso renascer, deixar-se transformar.
O que mais me espanta não são os 500 anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal. O primeiro foi João XXIII.
A resistência à reforma dos ministérios ordenados está a privar a Igreja Católica dos serviços mínimos sacramentais às comunidades. Os padres, que são cada vez menos, tornaram-se robôs de missas, baptizados e casamentos.
Será que nas resistências às reformas de Bergoglio se esconde a aposta na 4.ª Revolução Industrial para seminários de robôs mais sofisticados? 

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, prefácio de Frei Bento Domingues, Edições Universitárias Lusófonas, 1999
[2] Pe. Carreira das Neves, Lutero. Palavra e Fé, Presença, Lisboa, 2014, p.17
[3] Responsabilidade da Comissão Interluterana de Literatura. São Leopoldo.
[4] http://igreja-luterana.pt/site/lutero-ontem-e-hoje/
[5] Cf. Pe. Carreira das Neves, Op. Cit., pp. 419-422
[6] Cf. Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, pp. 7-12

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