Crónica de Anselmo Borges no DN
1 - Para mim, foi sempre claro que Francisco viria a Fátima no centenário das chamadas aparições. E veio. Viria, porque é profundamente mariano. Referindo-se a Maria, diz: "É a minha Mamã." E assim foi que, lá do alto do altar de Fátima, ele clamou, emocionado, para a multidão: "Temos Mãe, temos Mãe."
Veio. E quem o acompanhou pôde, mais uma vez, constatar que há nele um dinamismo sereno e contagiante de humanidade que a todos abraça, que quereria envolver todos num abraço forte e sentido de bênção, com beijos. Todos, mas de modo especial e único aqueles que ninguém abraça nem beija nem acaricia e dar-lhes confiança e esperança, a partir do Deus cujo nome é Misericórdia e que pode ajudar a converter os que têm o poder de ajudar na transformação do mundo a caminho de uma humanidade mais justa, fraterna, livre e a viver em paz.
Claro que Francisco tem de seguir protocolos, incluindo os de Estado, mas vê-se bem que esse não é o seu elemento. Onde está à vontade e é ele, é quando vai ao encontro das crianças, dos doentes, dos idosos, dos incapacitados, dos desempregados, dos presos... Então, o que se vê é o Evangelho, notícia boa e felicitante, a passar pelo mundo.
Ah! E aqueles oito minutos mágicos, de pé e em silêncio, perante a imagem da Senhora! Uma multidão de mais de meio milhão de pessoas em silêncio, com Francisco a presidir no silêncio e ouvindo o que só no silêncio se consegue ouvir e falar, lá na raiz de nós e de tudo. O que é que ele terá dito a ele mesmo, a Deus e à Senhora? O que é que cada um ouviu e disse a si mesmo, a Deus e à Senhora? "Deixai-me com as coisas/ Fundadas no Silêncio", pediu Sofia de Mello Breyner Andresen.
2 - O ser humano é rácio-emocional. Por isso, também na fé e na sua celebração, há uma dimensão de emoção. Mas a razão não pode ficar esquecida, obliterada. E há a bondade, mas acompanhada pela inteligência. E Francisco emocionou-se e apelou à bondade. Mas não postergou a razão e deixou uma mensagem de correcção teológica para Fátima. Aliás, ele tinha acabado de celebrar em Roma uma missa com a Caritas Internacional e lembrado as "intoleráveis injustiças" que os cristãos perseguidos vivem: "Façamos que todos tenham de comer e recordemos aos poderosos que Deus os chamará a julgamento", e tinha pedido a investigadores reunidos no Vaticano que "é preciso aceitar as novidades da ciência com total humildade".
Em Fátima, disse: "Olhando para Maria, voltamos a acreditar na "força revolucionária da ternura e do carinho". Nela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentirem importantes." O Céu desencadeia em Fátima "uma verdadeira mobilização geral contra a indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. Não queiramos ser uma esperança abortada!" Pediu pela Igreja, "que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel, pobre de meios e rica no amor". Rezou a Maria pela humanidade inteira, pedindo a paz: "Olha as dores da família humana que geme e chora neste vale de lágrimas. Une a todos numa única família humana. Seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e superaremos todas as fronteiras, indo a todas as periferias, para nelas revelar a justiça e a paz de Deus." Queridos irmãos: "Rezamos a Deus com a esperança de que nos escutem os homens; e dirigimo-nos aos homens com a certeza de que nos vale Deus."
Não falou em aparições. "A Virgem Mãe não veio aqui para que A víssemos; para isso teremos a eternidade inteira, naturalmente se formos para o Céu. No dizer de Lúcia, os três privilegiados ficavam dentro da Luz de Deus que irradiava de Nossa Senhora. Fátima é sobretudo este manto de Luz que nos cobre, aqui como em qualquer outro lugar da Terra quando nos refugiamos sob a protecção da Virgem Mãe para Lhe pedir: "Mostrai-nos Jesus."" Para correcção teológica, numa Fátima dolorista e das promessas, onde Maria se anteporia ao seu Filho e hereticamente seguraria o braço justiceiro e implacável de Deus, ficou: "Sinto que Jesus vos confiou a mim e a todos abraço e confio a Jesus, "principalmente os que mais precisarem", como Nossa Senhora nos ensinou a rezar.
Sobre cada um dos deserdados e infelizes a quem roubaram o presente, dos excluídos e abandonados a quem negam o futuro, dos órfãos e injustiçados a quem não se permite ter um passado desça a bênção de Deus encarnado em Jesus Cristo. Esta bênção cumpriu-se cabalmente na Virgem Maria, pois nenhuma outra criatura viu brilhar sobre si a face de Deus como ela, que deu um rosto humano ao Filho do eterno Pai. Peregrinos com Maria... Mas que Maria? Uma mestra da vida espiritual, a primeira que seguiu a Cristo pelo "caminho estreito" da cruz dando-nos o exemplo, ou uma Senhora "inatingível" e, consequentemente, inimitável? A "bendita por ter acreditado" sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou uma "santinha" a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A Virgem Maria do Evangelho venerada pela Igreja orante, ou uma Maria esboçada por sensibilidades subjectivas que a vêem segurando o braço justiceiro de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto como juiz implacável, mais misericordiosa do que o Cordeiro que se imolou por nós? Grande injustiça fazemos a Deus e à sua graça, quando se afirma em primeiro lugar que os pecados são punidos pelo seu julgamento, sem antepor - como mostra o Evangelho - que são perdoados pela sua misericórdia. Devemos antepor a misericórdia ao julgamento. Naturalmente, a misericórdia de Deus não nega a justiça. Em todo o caso, o julgamento de Deus será sempre feito à luz da sua misericórdia."
Assim, "possamos, com Maria, ser sinal e sacramento da misericórdia de Deus".