sábado, 3 de dezembro de 2016

O Islão e as Luzes (1)

Crónica de Anselmo Borges 

Malek Chebel 

Quando, há mais de 15 anos, Malek Chebel lançou a expressão "Islão das Luzes" não imaginava o sucesso que ela havia de encontrar. Nascido na Argélia, M. Chebel morreu no passado dia 12 de Novembro, com 63 anos. Antropólogo das religiões, psicanalista, especialista reconhecido no islão, sobre o qual escreveu obras fundamentais, ensinou em várias universidades, tendo-se tornado particularmente notado pelo seu Manifeste pour Un Islam des Lumières (Manifesto a Favor de Um Islão das Luzes).
Dada a importância da obra e no contexto dos grandes debates em curso sobre esta questão tão complexa como urgente, dedico--lhe a crónica de hoje e a do próximo sábado. Faço-o no mesmo espírito de Malek Chebel: "Na realidade, não há crítica válida a não ser que seja, por essência, autocrítica." O seu valor mede-se pelo "amor que se tem à coisa criticada". Não se trata, pois, de "agredir inutilmente os leitores de sensibilidade muçulmana, mas de fazer apelo à sua capacidade de discernimento e ao seu sentido das responsabilidades". O Manifesto tem 27 propostas para reformar o islão. Assim:

1. "Uma nova interpretação dos textos". Esta proposta é essencial e é "a primeira pedra do edifício da reforma". De facto, um texto tem de ser lido no seu contexto e segundo as regras da hermenêutica: sem pôr em causa a fé religiosa, é evidente que se não pode ler o mundo actual nem a fé com os olhos do século VII ou VIII, concretamente no que se refere às questões do direito. O mundo mudou. Trata-se, pois, de "adaptar o islão à modernidade, o oposto da tese fundamentalista que visa nem mais nem menos do que adaptar a modernidade ao islão, a começar pelo do século VII ou VIII".

2. "Afirmar a superioridade da razão sobre toda a outra forma de pensamento ou crença". Houve tempos em que o islão não esteve divorciado da razão. Pelo contrário, mesmo nos domínios da religião. Pense-se, por exemplo, no grande filósofo Averróis. Aliás, o Alcorão tem um juízo negativo quanto ao pensamento mágico, às superstições, à bruxaria. A razão científica não tem o monopólio da razão, mas a religião não pode considerar-se imune à crítica. Assim, nos estudos religiosos, o estudante não pode limitar-se a uma "assimilação passiva dos textos da tradição, sem qualquer distanciamento". É necessária "uma abordagem filosófica e espiritual de alto nível" e um confronto dos preceitos corânicos com a realidade "objectiva".

3. "Decretar a "guerra santa" como inútil e ultrapassada". Esta proposta visa "substituir a guerra santa por uma verdadeira ascese interior, um sacerdócio orientado para o bem, um verdadeiro aprofundamento da fé". O próprio Alcorão, que "dá a impressão de ser, sob certos aspectos, um manual de polemologia", tem "este versículo magnífico": "Quem matou um homem (inocente) é considerado como se tivesse matado todos os homens: quem salva um só homem é considerado como se tivesse salvado todos os homens" (V, 32). Mais de 197 versículos tratam da noção de jihad, "com pelo menos uma referência em que se diz que a guerra é uma prescrição divina (II, 246) e outra na qual se sublinha que, quando alguns incendeiam o fogo da guerra, Deus está lá para extingui-lo (V, 64)". Não é suficientemente sabido que o islão - uma das suas etimologias é "paz" - "não é intrinsecamente uma religião de guerra permanente e de conflitos repetidos". No entanto, talvez não haja "uma região no mundo que, percentualmente, gaste tanto em armamento como o mundo muçulmano".

4. "Abolir definitivamente toda a fatwa a apelar à morte". Emitir uma fatwa de condenação à morte "é um direito exorbitante que de modo nenhum pode depender de uma pessoa só, pois faz desta uma espécie de juiz divino absolutista e radical, um monstro de poder, um Leviatã dos tempos modernos". É necessário abolir totalmente a própria noção de fatwa, pois ela mostra pura e simplesmente que "o Estado de direito não existe e que a negação da justiça pode tornar-se a regra".

5. "Abolir os castigos corporais". O que há de mais bárbaro do que cortar a mão a um ladrão ou a língua a um mentiroso, condenar à morte por lapidação uma pessoa que cometeu uma falta? "Uma justiça digna deste nome não pode usar as mesmas armas que aquele que ela pune, mesmo severamente". Os açoites, as flagelações, todas as formas de tortura têm de ser "claramente abolidas nos textos e combatidas pelo Estado de direito".

6. "Lutar sem complacência contra a excisão". "Seria necessário imaginar uma proibição radical das ablações sexuais, seja qual for a forma que tomem: clitoridectomia, excisão, ninfotomia, infibulação." Nenhuma forma de mutilação genital feminina tem que ver com a purificação da mulher, apenas com a sua submissão ao desejo sexual masculino. A religião nunca legislou neste domínio, que afirma aliás que "a mulher excisada não pode em caso algum servir-se desta mutilação para se afirmar como melhor muçulmana".

7. "Proibir a escravatura, o tráfico humano, o tráfico de órgãos", incluindo a venda de bebés. Impõe-se "a interdição por todos os países muçulmanos destas práticas indignas".

Continuaremos.

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