segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Não haverá salvação?

Crónica de Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO de domingo



«A devoção que retém as pessoas nas igrejas, nas sacristias, 
está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias sociais e culturais.
 Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma Igreja de saída!»


1. Por causa do texto do passado domingo, recebi um telefonema longo, tentando mostrar-me que já não existem deuses, homens ou mulheres que nos possam salvar. O mundo está irremediavelmente perdido. Os cristãos são os mais culpados pela enganosa ideia de salvação. Depois da derrota de Jesus de Nazaré, inventaram a fé na impossível ressurreição. Não havendo remédio contra a morte, só ela nos pode livrar do mal de existir.
Depois desta metafísica veio uma sumária lição sobre a responsabilidade europeia no actual desconcerto do mundo. No séc. XIX, a filha da civilização das Luzes cegou-se com o alargamento das suas zonas de dominação. Duas guerras mundiais, de horrorosos extermínios, tornaram a memória do século XX numa vergonha sem nome.
Das ruínas surgiu a ideia de construir uma Europa como nunca tinha existido. Num momento de lucidez, alguns dirigentes de partidos democratas-cristãos e sociais-democratas consentiram em criar as condições para a sua união. Não previram que os sucessores iriam desprezar as boas regras da cooperação e do funcionamento democrático das instituições. Com desníveis económicos tão acentuados e sem o desenvolvimento de uma cultura de diálogo intercultural — a partir da família, da escola e das relações de trabalho — os velhos demónios do nacionalismo populista voltaram a agitar-se.
Os eurocépticos passaram a queixar-se do casamento e a calcular as vantagens e inconvenientes de um divórcio. O outro europeu está a tornar-se um adversário e os acossados pela guerra e pela fome que lhe batem à porta são seleccionados conforme o contributo que possam representar para os seus interesses e necessidades.
Uma Europa, esquecida da sua alma profunda, de mal com a economia, a política e as religiões, suicida-se julgando que está a salvar a sua pele. Recusa ver-se ao espelho, juntamente com os EUA, para não enfrentar as suas responsabilidades na desordem deste mundo. Caiu o Muro de Berlim, outros continuaram e novos se ergueram. As desigualdades sociais tornam retórica a Declaração dos Direitos Humanos. As Nações Unidas são um belo nome para a desunião global.

2. Com essa injecção de tópicos históricos pretendia o meu leitor curar a minha ingenuidade teológica. Agradeci, mas observei-lhe que existem muitos outros argumentos para reforçar o seu pessimismo. Se até um candidato à presidência da maior potência mundial, dispondo das universidades mais desejadas, consegue tantos apoios vociferando ordinarices, talvez possamos ver donde não vale a pena esperar a salvação. Existem outros caminhos.
Todos os dias me espanto com a inesgotável energia criadora, em actos, gestos e palavras, do papa Francisco. Alegra-me, sobretudo, a sua atitude permanente de acolher e suscitar a criatividade das outras pessoas, analfabetas ou intelectuais, sejam elas cristãs, agnósticas, ateias, de outras religiões ou sem religião. Incita a derrubar muros, a construir pontes, a escutar o outro com afecto. Gosta de mobilizar e casar a inteligência e as emoções para desenvolver um mundo de compaixão pelos caídos na valeta. Todos convocados, de geração em geração para cuidar, reparar e tornar bela a casa comum.
A tão falada reforma da Cúria e do Banco do Vaticano, os afrontamentos do mundo eclesiástico desde os bispos, padres e seminaristas, começando sempre pelos eminentíssimos cardeais, são apenas manifestações do acolhimento de Jesus Cristo em todas as dimensões da vida humana actual. Como acaba de escrever o filósofo francês Jean d’Ormesson: “Francisco reencontrou o espírito revolucionário do cristianismo. Foi o cristianismo, abrindo-se às mulheres, aos pobres, aos escravos que permitiu todas as grandes revoluções a partir das quais podemos pensar a sociedade na qual hoje vivemos. Só há uma revolução: o cristianismo.”[1]

3. Esta observação talvez não vá ao fundo da questão e não é apenas porque em nome do cristianismo e da sua pureza também foram praticados muitos crimes.
Jesus Cristo está testemunhado e configurado pelos textos do Novo Testamento, mas não está congelado há dois mil anos nessa escrita. Esses textos testemunham de Alguém que está vivo, hoje, nos acontecimentos e na vida das pessoas, acolhido ou rejeitado. A grande tentação religiosa consiste em pensar que o encontro com o Ressuscitado acontece apenas e sobretudo nas missas, nos sacrários e nas exposições do Santíssimo Sacramento. Esses exercícios espirituais valem e muito na medida em que nos lembrem que Jesus Cristo é o clandestino da semana, derrubando muros, separações, inimizades, entre pessoas e grupos. A devoção que retém as pessoas nas igrejas, nas sacristias, está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias sociais e culturais. Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma Igreja de saída!
O Papa não está a inventar nada. Lembrar apenas a pergunta de Deus: que fizeste do teu irmão? [2] O julgamento religioso de toda a história humana, religiosa ou profana, em todos os seus momentos, depende da resposta a essa pergunta[3].
Há salvação. Deus não gosta de fazer nada sozinho e o papa Francisco também não.

[1] Le Monde des Religions, n 79, p. 70
[2] Gn 4, 1-16
[3] Mt 25, 31-46

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