sábado, 24 de setembro de 2016

Contas. Ética e política

Crónica de Anselmo Borges
 

Procuro seguir o velho preceito de não ir além da sandália (ne sutor ultra crepidam). Mas, desta vez, insistiram tanto que aceitei. Ir falar ao Congresso dos Revisores Oficiais de Contas (ROC). E disse.


1. Quando era pequeno, também andei na escola. Na altura, a gente ia tentar aprender a ler, a escrever e a contar. Contar pareceu-me decisivo, com o ler e o escrever. Fazer contas, o que implicava somar, subtrair, multiplicar, dividir.
Com o tempo, aprendi que alguns só sabem somar e multiplicar para eles próprios. Subtrair também sabem, sobretudo aos outros. Por vezes também subtraem tanto a si próprios que ficam na penúria - no caso dos Estados, acabam por cair na bancarrota. Dividir pelos outros os bens que são de todos - justiça social e equidade - é dificílimo e aprendizagem que exige heroicidade.

2. Ao contrário dos outros animais, que vêm ao mundo já feitos, os seres humanos, nós, por causa da neotenia, vimos ao mundo por fazer, e essa é a condição de possibilidade de sermos o que somos: precisamente humanos, pessoas livres, cuja tarefa essencial no mundo, diria, a única tarefa, é fazermo-nos a nós próprios: vindo à existência por fazer, temos por missão, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós mesmos. Somos senhores de nós, das nossas acções e, por isso, somos responsáveis por elas e por nós. Que andamos no mundo a fazer? A fazermo-nos. Quem acha que isso é tarefa pouca? E, no fim, tanto pode resultar uma obra de arte como uma vergonha, uma porcaria.
E cá está. Temos de prestar contas pelo que fazemos, pelo que fizemos de nós, em primeiro lugar. Esta é a nossa tarefa ética. Somos, por constituição, seres abertos à ética.

3. Sendo por natureza, seres sociais, fazemo-nos uns aos outros. E nesta ordem de relações aparecem os negócios, negócios de toda a ordem. E, portanto, contas, inevitavelmente contas. E disso é preciso prestar contas.
E se todos fôssemos éticos, as leis seriam justas e não haveria falsificação nas contas. Não seriam precisos revisores de contas. Eles existiriam só para verificar se não tinha havido engano nas contas.
Mas não é assim. No Evangelho, um livro pequenino, cheio de sabedoria, está tudo, dizem, até sobre contas. Cito o Evangelho segundo São Lucas. "Jesus disse aos discípulos: havia um homem rico, que tinha um administrador, e este foi acusado de lhe malbaratar os bens. Chamou-o e disse-lhe: "Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar". Disse consigo o administrador: "Que hei-de fazer, visto o meu senhor me ir tirar a administração? Cavar não posso; de mendigar tenho vergonha... Já sei o que hei--de fazer, para que me recebam em casa, quando for removido da administração". E, mandando chamar um a um os devedores, disse ao primeiro: "Quanto deves ao meu senhor?" Este respondeu: "Cem talhas de azeite". "Toma o teu recibo, senta-te depressa e escreve cinquenta". A seguir disse a outro: "E tu, quanto deves?" Cem medidas de trigo". "Toma o teu recibo e escreve oitenta". E o senhor elogiou o administrador desonesto, por ter procedido com esperteza. É que os filhos deste mundo são mais cautelosos do que os filhos da luz, no trato com os seus semelhantes."
Se isto não é corrupção, onde está a corrupção?
Mas este passo do Evangelho conclui assim: "E eu digo-vos a vós: arranjai amigos com o vil dinheiro para que, quando este faltar, eles vos recebam nas tendas eternas. Nenhum servo pode servir a dois senhores, porquanto, ou há-de odiar a um e amar o outro, ou então ligar-se-á a um, desprezando o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro." Não podeis tornar-vos escravos do Dinheiro enquanto vosso deus e ser éticos.

4. Se fôssemos todos éticos, não era precisa a política. Mas não somos.
Então, precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele o monopólio da violência, porque não somos éticos. Se todos fossem éticos, no quadro do fazer-se bem moralmente a si próprio, prestando contas de si e das contas, não seria necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir os conflitos. Como escreve o filósofo A. Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de tribunais, de forças armadas, de prisões.
Urgência maior é a formação ética, moral, para os valores, que não são redutíveis ao valor do dinheiro. Sem valores éticos assumidos, remetemos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais... Mas então só fica a lei e a sua sanção. Ora, não é possível legislar sobre tudo e, sobretudo, acabaria por ser necessário pôr um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei; como os polícias também são humanos, seria preciso pôr um polícia junto de cada polícia e assim sucessivamente... Juvenal disse. "A guarda guarda-nos. Quem guarda a guarda?"

5. Perante a situação a que o país chegou - bancos falidos e os contribuintes que paguem, perante os conluios e cumplicidades entre política e negócios, alta corrupção por muitos lados, uma economia entalada, uma escola débil, a espectacularização, por vezes patética e imbecil, da sociedade e da política, a idolatrização do dinheiro e a falta de transparência, uma cultura da moleza..., vim aqui apenas dizer que, sem uma profunda conversão ética e moral de todos, não vejo futuro brilhante para Portugal.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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