Reflexão de Georgino Rocha
A vida humana tem futuro? O que fazemos agora esgota-se no momento em que acontece ou prolonga-se para além do tempo? O que sobrevive de mim, após a morte, tem algo a ver comigo que procuro realizar-me em cada momento? O que me aguarda definitivamente tem algo a ver com as opções que faço em cada dia e a vida que levo?
Estas e outras preocupações – talvez não tão elaboradas – atormentam os acompanhantes de Jesus no seu “percurso” para Jerusalém. Um anónimo ergue a voz do meio da multidão e condensa-as na pergunta: “Senhor, são poucos os que se salvam?” - pergunta que fica sem resposta directa.
Jesus aproveita a oportunidade e faz um dos mais belos ensinamentos do seu magistério. Ignora o número pretendido e centra a sua atenção nas pessoas, exortando-as a praticarem uma qualidade de vida expressa em acções coerentes; condiciona o desfecho da existência terrena à luta, ao combate, ao “esforço” feito por cada uma como prova de acolhimento ao dono da casa e sintonia com a sua vontade; garante que haverá surpresas que encantarão uns e desiludirão outros; exorta com insistência a entrar pela “porta estreita” a fim de poder sentar-se à mesa da felicidade; responde no plural, sinal de que a salvação se realiza em solidariedade fraterna, embora seja pessoal; designa esta realidade englobante por reino de Deus, indicando claramente o futuro emergente na história que se desvendará plenamente na eternidade.
A coerência entre o que se ouve e diz e o que se faz; entre o que se convive em festas alegres e amigas e a distância de sentimentos e critérios de vida; entre a presença vistosa, provocadora e hipócrita em praças públicas e as atitudes honestas, fruto da verdade e do bem; entre os comportamentos sociais fingidos e corruptos e o testemunho honrado e corajoso, ainda que incompreendido e desvirtuado; entre as situações discriminatórias e humilhantes e os laços fraternos das pessoas entre si e as relações filiais com o Deus de todos, esta coerência vivida é expressão do reino anunciado por Jesus e tão belamente visualizado na porta estreita, na novidade do Evangelho.
“Serão muitos os que se salvam?”constitui pergunta que “baila” no coração humano: por curiosidade, por temor, por desejo sincero de acertar nos “preparativos”, por saber da sorte alheia, sobretudo em relação aos que praticam qualquer religião. A resposta é nossa. A decisão depende de cada um. A urgência aperta. A coerência serve de critério aferidor. A prática da justiça e da misericórdia são, para Jesus, a porta estreita de “entrada na casa” da salvação. Cristãos, budistas, hinduístas e tantas outras pessoas de consciência honrada, os que “adoram” o sol, as árvores ou outro ser criado que visibilize a energia em que confiam…todos podem salvar-se. “Virão do Oriente e do Ocidente, do norte e do sul e sentar-se-ão à mesa do Reino de Deus”. A largueza da porta estreita dá passagem a todas as pessoas boas, honradas e honestas, próximas e solidárias com o seu semelhante, praticantes sinceras do bem que estava ao seu alcance.
A resposta de Jesus faz estremecer as convicções dos ouvintes. Lucas não testemunha nenhum sentimento de reacção. Mas o contraste é tão grande que facilmente se pode admitir. De nada valem os critérios de ter andado com Ele, de juntos haverem convivido à mesa e estarem nas praças públicas, sem falar na prática ritual do que estava preceituado. O segredo maior encontra-se na sinceridade do coração, na prática da justiça, no amor compassivo e misericordioso.
Jesus deixa-nos o seu exemplo sedutor: Em sintonia permanente com Deus Pai, preocupa-se com os doentes e cura-os, com os pobres, os pecadores e publicanos a quem atende e oferece um modo de entender a vida como relação de bondade com todos de respeito, de tolerância, de proximidade, especialmente aos mais humildes e simples. “Onde houver seres humanos, que vivam estas atitudes, tais seres humanos são os cristãos que Jesus quer. E que Jesus espera no encontro definitivo de salvação. J. M. Castillo. Atreve-se a entrar pela porta estreita. Por que não?
Que bela a prece de Unamuno: Aumenta a porta, Pai, porque não posso passar; Tu a fizestes para criancinhas, e eu cresci apesar de tudo. Se não aumentas a porta, faz-me pequenino, por piedade; faz-me voltar à idade abençoada, em que viver é sonhar.