sábado, 12 de março de 2016

Bem-aventurados os ricos!

Crónica de Anselmo Borges 

 "A raiz de todos os males 
é a paixão pelo Dinheiro"

1 Mais de mil milhões de pessoas têm de viver com menos de 1,14 euros por dia. A cada dia morrem de fome entre 30.000 e 40.000 pessoas (16.000, crianças). Em 2015, 6% apenas da população detinham metade da riqueza do mundo, mas neste ano de 2016 a situação agravar-se-ia, pois aquele número desceria para 1%, o que significa que a distribuição da riqueza seria a mais desigual de sempre, disse o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Nos últimos anos, tem-se assistido ao aumento da concentração da riqueza nos bolsos de uma elite cada vez mais restrita: entre 2010 e 2015, a fortuna dos mais ricos aumentou em cerca de 44%, mas o património dos mais pobres diminuiu. Os pobres, apesar de, em geral, estarem menos mal, são cada vez mais pobres. É o que acaba de confirmar o relatório da ONG Oxfam: o 1% dos mais ricos tem 50,1% da riqueza mundial. As 62 pessoas mais ricas do planeta possuem tanta riqueza como a metade mais pobre da população mundial: 3.600 milhões.
Os famosos "mercados", com a financeirização especulativa da economia, potenciados pelas novas tecnologias e pela falta de uma governança global, fazem, numa linguagem esotérica, inacessível ao leigo, jogos que causam crises em cadeia e que os mais pobres acabarão por ter de pagar. E também há trafulhice explícita, sendo um exemplo disso (só um exemplo) o construtor automóvel Volkswagen, que fez batota, ao falsear as emissões dos motores em caso de teste, derrubando assim, como lembrou A. Lacroix, a teoria de Max Weber, segundo a qual a Europa do Norte seria "mais séria e virtuosa" do que a do Sul.

2 Portugal vive e participa neste mundo caótico e explosivo. Os casos de corrupção sucedem-se. A distância entre os muito ricos e os pobres é uma das mais acentuadas da UE. Continuam as cumplicidades entre a política, os boys e os negócios. São por vezes escandalosos os salários e as benesses dos gestores da banca e públicos: alguns gestores públicos viram salários aumentados em 150%. O IRS subiu em média, desde 2012, 28%, mas apenas 5% para os milionários. Não se entende muito bem as subvenções vitalícias de políticos - os ex-Presidentes da República são, evidentemente, um caso especial, mas, mesmo assim, têm privilégios a mais. Leio que o resgate de bancos já custou aos contribuintes 16.000 milhões de euros. Soube-se agora: a banca concedeu quase 30.000 milhões de euros sem qualquer garantia, e pergunta-se quem vai pagar e sobretudo como se vai gerir a descredibilização da banca, que, por natureza, deveria ser o espaço da confiança. A situação do sistema financeiro é dramática. De modo geral, as "elites" são incompetentes, autocentradas, distanciadas do "povo". E assiste-se a isto tudo no meio da impotência. E faltam, na expressão de Adriano Moreira, "vozes encantatórias". O Papa Francisco seria uma excepção.

3 Jesus disse que não se pode servir ao mesmo tempo ao Deus vivo e ao deus Dinheiro. Referindo-se ao capitalismo selvagem, o filósofo G. Agamben veio recentemente dizer que, "para entendermos o que está a acontecer, é preciso tomar à letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz e implacável que alguma vez existiu, porque não conhece nem redenção nem tréguas. Ela celebra um culto ininterrupto, cuja liturgia é o trabalho e cujo objecto é o dinheiro. Deus não morreu, tornou-se Dinheiro".
Jesus também declarou bem-aventurados os pobres em espírito (não de espírito), os limpos de coração, os que têm fome e sede de justiça, os que se batem pela paz, os misericordiosos... Mas essas bem-aventuranças entraram em desuso (alguma vez estiveram em uso?). O que está em vigor são as bem-aventuranças ao contrário, como escreve Jesús Mauleón: "Bem-aventurados os ricos, porque têm "massa", manjares, luxo e abundância para pagar todas as suas necessidades e caprichos. Bem-aventurados os ricos, porque muita gente crê que são mais respeitáveis do que os pobres. Bem-aventurados os ricos, porque podem permitir-se ter à sua volta gente que os serve e lhes recorda que o são. Bem-aventurados os ricos, porque, embora neste mundo nem tudo se possa comprar com dinheiro, pode-se comprar tantas coisas e tantas pessoas... Bem-aventurados os ricos, porque, quanto mais dinheiro acumulam, embora não seja muito claro como, mais espertos parecem." Etc.

4 Mas, dito o que aí fica dito, e talvez por isso mesmo, por causa do que aí fica dito, é preciso entre nós seguir uma política realista, prudente. Porque, se tivermos de ir para outro resgate, também precisaremos de nos preparar para o pior. De facto, quem mais sofrerá são a classe média e os pobres. Há uma coisa terrível para a qual preveniu Bismarck, ao dizer que, com as bem-aventuranças do Evangelho, não conseguia governar a Prússia. É que, na Bíblia, o autor da Primeira Carta a Timóteo também já prevenira: "a raiz de todos os males é a paixão pelo Dinheiro".

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