Reflexão de Georgino Rocha
de uma dignidade inalienável»
Por que me trazeis apenas a mulher? Onde está o homem que a acompanhava quando foi apanhada em flagrante? Ninguém é adúltero sozinho. Sois cúmplices da sua fuga? Quereis sonegar a sua responsabilidade? Não sabeis ler o que Moisés prescreveu? “O homem que cometer adultério com a mulher do seu próximo tornar-se-á réu de morte, tanto ele com a sua cúmplice” (Lev 20, 10; cf Dt 22, 22).
Estas e outras questões decorrem do episódio protagonizado por escribas e fariseus que apresentam a Jesus uma mulher surpreendida em adultério e, em jeito de armadilha, querem saber o que fazer em tais situações. Cobrem-se com a autoridade de Moisés. Aguardam o parecer de Jesus que, parece, não tem alternativa. Ou diz pura e simplesmente: Cumpram a lei e negaria a misericórdia que tanto evidenciava na sua prática ou preferia esta e distanciava-se dos preceitos recebidos e religiosamente observados.
A atitude de Jesus é de Mestre em que a pedagogia dá as mãos à justiça regenerativa, a sabedoria brilha na discreta prudência, o perdão triunfa sobre a acusação incriminatória. Jesus não se deixa nivelar pela pauta dos adversários. Não indaga mais circunstâncias como podia ter feito recorrendo a perguntas que se reproduzem no início; perguntas muito incisivas e oportunas. Não ilude a questão nem a comenta. Assume uma postura interpelante, não de indiferença, mas de prudente silêncio. Abaixa-se, colocando-se ao nível da mulher cercada por eles. Gatafunha ligeiramente, indiciando algo que lhe vai no coração. Instado novamente, ergue-se à altura dos acusadores e declara com determinação: “Quem dentre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”. E deixa que as reacções surjam. Entretanto volta à posição nivelada pela mulher acusada.
Que sentimentos despertaria no coração desta a sentença de Jesus? Seria agora que começariam a cair as pedras da lapidação sobre o seu corpo? Haveria ainda alguma pausa que lhe desse um novo alento? Surgiria alguma oportunidade de retomar a vida digna? Que bem lhe devem ter soada as palavras suaves de Jesus: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? Ninguém, Senhor” Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.
A narrativa deste episódio feita na escola de João é muito expressiva: a sagacidade dos legalistas, a destreza de Jesus, a situação da mulher adúltera e a surpresa agradável do perdão alcançado. Ontem como hoje.
A situação da mulher, apesar da caminhada histórica e abnegada de tantas/os que lutam pelo reconhecimento da sua dignidade, continua um autêntico drama humanitário. Sirva de visualização a referência a alguns dados do relatório das Nações Unidas para o desenvolvimento de 2015:
A nível mundial, uma em cada oito pessoas continua a passar fome. Morrem demasiadas mulheres durante o parto, quando dispomos dos meios para as salvar. Mais de 2,5 mil milhões de pessoas não têm acesso a instalações sanitárias melhoradas, das quais um milhão continua a praticar a defecação a céu aberto, o que constitui um grave risco para a saúde e para o ambiente. A nossa base de recursos está em grave declínio, com perdas contínuas de florestas, espécies e reservas de peixe, num mundo que já está a sentir o impacto das alterações climáticas.
A realidade chega a ultrapassar o sonho: eliminação de crianças por serem meninas, mulheres vítimas de toda a espécie de violência, trabalhadoras descriminadas, viúvas ostracizadas. Mesmo nas países mais democráticos, embora sem tanta expressão nem ruído.
Jesus aponta claramente outro caminho: Todos possuidores de uma dignidade inalienável. Todos responsáveis pela igualdade fundamental, fruto da comum humanidade. Todos complementares na relação de reciprocidade das diferenças funcionais indispensáveis a uma vida feliz. Todos construtores de uma nova cultura de valores em que pessoa ocupa o primeiro lugar por ser quem é: rica de capacidades a desenvolver sempre mais, pobre e frágil nas limitações e, por isso, necessitada de compreensão amiga e ajuda misericordiosa. Pois Deus é Pai de cada ser humano e a todos ama com especial ternura. A solidariedade fraterna é a matriz comum de todos nós.