domingo, 7 de fevereiro de 2016

Tirar o Evangelho da cadeia

Crónica de Frei Bento Domingues 

«Os Evangelhos não podem ser 
o arquivo morto das Igrejas

1. Com intenções diversas, dizem-se que já é tempo de me convencer de que faço parte de uma minoria religiosa em extinção. Alguns afirmam-no como um lamento: depois do desprezo laicista pelas raízes cristãs da cultura europeia, passando pelo esquecimento ecuménico do Vaticano II, podemos estar a caminhar, a passos largos, para uma Europa muçulmana de cariz revanchista. Portugal, depois de um longo interregno, estaria incluído numa explícita vingança.
Não sou nada bom em sociologia religiosa e já não tenho idade para chegar a ver o que será esse futuro. Espero que as novas gerações católicas consigam libertar a Igreja de certas formas religiosas e movimentos que a asfixiam, mas não para os trocar por algo que se pareça com a vida da maioria dos países dominados pela lei islâmica.
Importa não esquecer que o movimento cristão nasceu de um processo libertário e só conseguirá tornar-se indispensável enquanto tal: É para a liberdade que Cristo vos libertou. Não vos deixeis prender, de novo, ao jugo da escravidão [1]. Seja ele qual for.
Nos últimos Domingos fui intimado a confrontar-me com essa questão, juntamente com os outros participantes na Eucaristia. É fundamental repensar tudo em confronto com a narrativa de S. Lucas [2]. A missão e a responsabilidade actual das Igrejas exigem que se perceba o que está em jogo nos acontecimentos, gestos, decisões e palavras do pontificado reformador do Papa Francisco.
Comecemos pelo texto evangélico. Jesus foi a Nazaré onde tinha sido criado e, segundo o seu costume, entrou, em dia de sábado, na sinagoga. Levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías [3]. Abrindo-o, encontrou a passagem onde está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor.
Diz S. Lucas que, chegado a esse ponto, enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos, na sinagoga, tinham os olhos fixos nele que fez, então, uma declaração insólita: Hoje realizou-se a Escritura que acabais de ouvir.
De repente, manifestou-se uma reviravolta no auditório que desencadeou uma polémica tão azeda que os seus conterrâneos resolveram acabar com esse improvisado e atrevido profeta. Estava a desonrar a sua terra e a sua parentela. Expulsaram-no para fora da cidade com intenção de o matar. Ele não se deixou intimidar.

2. Que terá, então, acontecido para provocar aquela reviravolta, dado que Jesus tinha chegado à sua terra depois de ter suscitado grande entusiasmo nas cidades por onde tinha passado?
O texto pode parecer algo confuso, mas no fundo os seus conterrâneos estão indignados com o que aconteceu: pode andar por aí a enganar as multidões, mas a nós não nos engana. Conhecemo-lo bem a ele e aos seus familiares.
Jesus, de facto, tinha reservado para Nazaré atitudes e declarações muito graves: primeiro, atreveu-se a fechar o livro imediatamente depois de uma leitura propositadamente incompleta do texto de Isaías sobre o ano jubilar, suprimindo a passagem sobre o dia da vingança, da ira de Deus; abandonou a sua qualidade de leitor e de intérprete da Escritura, para ser ele próprio a inaugurar esse tempo absolutamente novo, o tempo da pura graça do amor.
Isto significava que tinha acabado o estilo da conversa religiosa, repetitiva, da qual não se espera nada, pois com ela também nada acontece: é só falar!
Com Jesus, o cenário mudou: o dizer do amor faz acontecer! Do lirismo literário do texto de Isaías, saltou-se para as transformações da realidade. Nos capítulos a seguir à controvérsia, Jesus não se mostrou nada deprimido. Saiu na direcção de todas as periferias, a intervir, a suscitar e a organizar os colaboradores.
A estes pede-lhes que “sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” e não se transformem em juízes de qualquer tribunal eclesiástico. Não quer cegos a fazer de lúcidos. Deseja pessoas de bom coração, não beatas com a boca cheia de invocações divinas. Sem a prática transformadora da realidade, a conversa é só areia movediça [4].

3. O entusiasmo que Jesus voltou a desencadear também estava semeado de obstáculos e confusões, tanto entre os mais ortodoxos como entre os próprios reformistas, os discípulos de João Baptista.
Para complicar o panorama, o Mestre altera o estatuto religioso das mulheres que passam a fazer parte do grupo dos discípulos. A nova ordem de coisas inclui judeus e gentios, homens e mulheres, a família dos que se deixaram seduzir pela boa nova do reino de Deus [5].
Não podemos deixar de ir ao encontro dessas narrativas de há dois mil anos. Inauguraram um tempo de vinho novo em odres novos. Os Evangelhos não podem ser o arquivo morto das Igrejas. Estas não podem viver sem a circulação permanente entre essa fonte e a complexidade do nosso tempo. Para escutar essa música dissonante é preciso querer nascer de novo e abandonar os mundos fechados para ver a luz.

[1] Gl, 5, 1
[2] 4, 14-36
[3] 61,1-2
[4] Lc 5- 6
[5] Lc 7-8

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