Crónica de Maria Donzília Almeida
Ão ão…
Há muito tempo, que não dou um ar da minha graça, mas estou bem rijo e cheio de genica. Continuo a correr pelo cãodomínio fora, como se fosse um perdigueiro à procura de caça. Mas não, o que faço é correr atrás dos carros que circulam na rua, ou de algum cãopanheiro meu que passa, em plena liberdade. Às vezes, vêm em matilha e fazem uma chinfrineira, que eu até penso que deve incomodar os moradores na rua. Mas não lhes digo nada… porque os invejo! Gostava de estar no lugar deles e fazer-lhes cãopanhia! Tenho a certeza que eles me aceitariam na sua família e me iriam tratar muito bem… nunca vi um cão abandonar ou escorraçar um familiar. Somos uma raça à parte, com sentimentos que estão em vias de extinção nos humanos, que se julgam tão inteligentes: o sentido de gratidão, reconhecimento e fidelidade.
Um cão quando se dedica ao dono, é um caso muito sério! Nós não brincamos com os sentimentos dos donos! Se nos dedicamos, é de corpo e alma!
A minha dona, às vezes, é que se passa comigo, quando me vê a fazer covas e mais covas… até já disse à Chiara, a menina italiana, que eu devo andar à procura de algum tesouro escondido, como os arqueólogos… Não sei muito bem, mas parece que são aqueles homens esfarrapados, de picareta na mão, a escavar como eu, à descoberta do que está enterrado: ossadas de homens pré-históricos, de civilizações antigas… sei lá que mais! P’ra mim, ossos só os que me trazem de pitéu e que geralmente são de galinha! Sou carnívoro, dizem, mas nunca matei nenhuma galinha nem qualquer outro animal. Até cheguei a conviver com uma série delas, no meu amplo espaço e nunca lhes fiz mal! Sou um paz de alma, como já me chamaram, embora às vezes andasse com alguma na boca, mas era só p’ra inglês ver! Sou um pacifista, dito e feito… não só tenho a fama, como também tenho o proveito.
O que acima de tudo, deixa a minha dona em polvorosa, é ver-me ao relento, enroscado numa cova , em vez de me abrigar no conforto do meu canil, sempre com uma alcatifa fofinha de fibra natural.
Às vezes, quando me dá na real gana, deito-me lá dentro e fico ali abrigadinho da chuva, do vento e da grande humidade da noite. Quando a minha dona vem despedir-se de mim, à noite e me vê lá deitadinho, até lhe apetece dar um pulo de contente, ou então atirar um foguete p’ra festejar o acontecimento….mas contem-se. Sabe que me dirigisse a palavra, eu não faria ouvidos de mercador…como algumas pessoas, mas levantava-me logo p’ra lhe lamber as mãos! Sou um cãopanheiro muito grato… não sou lambe-botas! Mas depois… ficaria outra vez a cirandar pelo cãodomínio, a apanhar aquela humidade toda nos ossos! E depois o reumatismo? A minha dona aflige-se toda e até diz que eu sou um cabeça no ar, que não sigo as suas recomendações, em relação à minha saúde.
Só quando se abeira de mim, é que eu me sento de imediato… quando vejo algum petisco na mão…Sou um interesseiro… já me chamaram!
Neste novo ano, quero desejar a todos os cãezinhos da rua, sem abrigo, que se calhar, me invejam, uns petiscos caídos de alguma mão caridosa que saiba reconhecer o valor e a dedicação de um cão.
Agora com o PAN (Pessoas Animais Natureza) no parlamento, espero que olhem para os nossos direitos com outros olhos… assim foi dito na campanha eleitoral… ver para crer como S. Tomé.
Se passarem pelo meu cãodomínio e me virem ao relento... não se admirem… eu sou um cãotestatário!