Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
Esperava-se, nesse momento,
tanto entre judeus como entre gentios,
que o universo mudasse de signo
para uma nova salvação.
1. Um católico fervoroso tentou convencer-me de que a preocupação com a Bíblia e mesmo com os textos do Novo Testamento era prejudicial à sua fé, pois suscitavam-lhe muitas dúvidas e, para viver, as certezas é que são precisas. Tinha ficado muito satisfeito, no entanto, ao ouvir dizer que, “ao contrário do Judaísmo e do Islão, o Cristianismo não era uma religião do Livro. Era uma ligação espiritual a Jesus Cristo que, aliás, não tinha deixado nada escrito. Nenhuma doutrina ou prática moral se poderia reclamar dele”.
Perante semelhante desistência intelectual, não entrei na conversa. Por outro lado, também não disponho de respostas rápidas para questões complexas, como tantas vezes me foi pedido nesta quadra natalícia. Uma, repetida por vários leitores, regressou como se fosse a primeira vez: afinal, quem é o fundador do Cristianismo?
Um famoso historiador das origens cristãs, Antonio Piñero, em várias das suas obras e intervenções, sustenta que nenhuma das ideias do Novo Testamento, isoladamente consideradas, é original. A teologia deste conjunto de escritos não é um meteorito descido do céu. É um produto da história teológica, social e literária anterior que importa conhecer para compreender o nosso passado religioso e de certo modo, o próprio Ocidente.
Para ele, o Ano I [1], aquele em que Jesus nasceu, não pode ser passado nem por alto nem ao lado. Nesse momento, o judaísmo - e o cristianismo que dele nasceu - encontram-se a cavalo entre dois mundos: o greco-romano e a herança judaica muito plural. Esse é o ano preparado para o nascimento do cristianismo e para a sua ideia messiânica de salvação, que brota tanto de Israel como do mundo greco-romano que o rodeia.
A prova contundente dessa afirmação encontra-a A. Piñero, na IV Égloga de Virgílio. Este poeta tão profundamente romano e, aparentemente, tão afastado do mundo judaico, compôs um famoso canto a um misterioso divino infante, cujo nascimento inaugura uma nova idade de oiro do mundo. Um poema, aqui adaptado, que até parece um apocalipse messiânico judaico: Aí vem a idade última anunciada nos oráculos de Sibila. Com um menino que vai nascer será finalmente concluída a idade de ferro e por todo o mundo irá surgir uma idade doirada… Olha como se agitam o mundo sobre o seu pesado eixo, a terra e o espaçoso mar com o profundo céu. Olha como tudo se regozija com o novo século que há-de chegar.
Esperava-se, nesse momento, tanto entre judeus como entre gentios, que o universo mudasse de signo para uma nova salvação.
Ao dar à luz Jesus de Nazaré, personagem transcendental no desenvolvimento do Ocidente, o Ano I é para Piñero, um dos mais importantes para a História universal.
2. Não se trata de uma afirmação gratuita. O autor explica, ao longo da sua obra, de forma rigorosa e pedagógica, a situação política, económica, social e, sobretudo, religiosa do Império Romano e a repercussão que tinha no âmbito de Israel. Trabalha à base das perguntas que faz para compreender em que mundo nasceu e se desenvolveu o cristianismo, vencendo os lugares comuns da ignorância.
Como afectava a dominação romana a vida quotidiana de Israel? Que impacto teve o principado de Augusto e o fim da República? Como estava organizado o judaísmo? Que influências tiveram as religiões que o rodeavam? Qual era a situação da mulher, dos diversos grupos religiosos judaicos, as ânsias de salvação que se viviam em todo o Mediterrâneo oriental, as relações entre judeus e pagãos? Etc.
Sem ter isto em conta, os textos do Novo Testamento são ilegíveis. Nenhum tem a assinatura de Jesus de Nazaré. Não é como escritor que Jesus se tornou conhecido e imprescindível. Não é o único caso entre as grandes personalidades da História. Também não foi o único caso de reformadores fracassados.
3. Jesus de Nazaré viveu e trabalhou na Palestina do primeiro século. Acerca disto não há dúvidas. Mas ficar só com aquilo que, pelo método histórico, se pode saber é ficar com quase nada. Sabemos que viveu no quadro de um judaísmo plural e, dentro dele, fez o seu caminho. Teve discípulos, foi seguido por multidões, suscitou muitas controvérsias e acabou cruxificado. Mas porque não desapareceu a sua memória, como a de muitos rebeldes e muitos milhares de cruxificados?
Sob o ponto de vista religioso um cruxificado, um blasfemo, um possesso do demónio não era propriamente um protegido de Deus. Contra todas as evidências passa a correr a ideia que Deus o ressuscitou. Por outro lado, não se estava no fim do mundo, na ressurreição universal.
Havia o sinal de uma nova convocatória. O estranho é que os discípulos acabaram por dar crédito às mulheres, cuja opinião não contava.
Os seus discípulos, como bons judeus, até podiam saber a Bíblia de cor. Entregaram-se apaixonadamente a reler, a reinterpretar, a reescrever tudo o que a Jesus dizia respeito, para mostrarem que ele era verdadeiramente o Messias, o Cristo esperado. Lêem e reinterpretam tudo, mas da frente para trás. Ao ficar tudo tão bem acertado, até parece que estava tudo mais que previsto.
Veremos qual era o método prodigioso fixado por Mateus, Marcos, Lucas e João, sem falar de Paulo.
[1] Antonio Piñero, Año I, Israel Y su mundo cuando nació Jesús, Laberinto, 2008