Crónica de Anselmo Borges
nem podem viver como "faraós"»
Papa Francisco
Estive com ele uma vez, em Paris, e impressionou-me muito a sua imensa cultura e simplicidade. Intelectual de enorme prestígio, ocupou a cátedra de História das Mentalidades Religiosas no Ocidente Moderno, no Collège de France. Autor de numerosas obras mundialmente conhecidas, Jean Delumeau acaba de publicar L"Avenir de Dieu (O Futuro de Deus), com o seu percurso de vida intelectual e espiritual ao longo de 60 anos. Católico de fé assumida, diz-se "humanista cristão" e interroga-se sobre as inquietações do presente e o futuro do cristianismo. Do alto da sabedoria e da autoridade dos seus 92 anos, propõe, já na conclusão, uma série de reformas urgentes para a Igreja, que, dada a sua importância, apresento hoje e no próximo Sábado.
Antes dessa conclusão, Jean Delumeau atravessa, em síntese, os grandes temas das suas investigações científicas, no quadro da história das mentalidades, como: o medo, o pecado e a culpabilização, a confissão, o perdão, o sentimento de segurança, o paraíso e as suas imagens, a Europa de hoje. E deixa pensamentos sábios, que obrigam a reflectir. Assim, no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, escreve:
"Hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram e, ai!, criam já muitas vezes o inferno na terra." Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, "descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida". "Constatou-se que o sentimento de insegurança - o "complexo de Dâmocles" - é causa de agressividade." No espaço dedicado ao paraíso terrestre reencontrado, refere que sobre Portugal se pôde escrever que "a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo durante tanto tempo e conservando a mesma expressão é um fenómeno que, exceptuando a raça judaica, não tem equivalente na história".
"Hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram e, ai!, criam já muitas vezes o inferno na terra." Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, "descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida". "Constatou-se que o sentimento de insegurança - o "complexo de Dâmocles" - é causa de agressividade." No espaço dedicado ao paraíso terrestre reencontrado, refere que sobre Portugal se pôde escrever que "a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo durante tanto tempo e conservando a mesma expressão é um fenómeno que, exceptuando a raça judaica, não tem equivalente na história".
Apenas dei exemplos. Agora, algumas propostas de reforma da Igreja.
1. Um apontamento prévio quanto a "inventar o futuro": a partir do seu caminho pessoal, à luz da história e seguindo e exprimindo as inquietações do nosso tempo, Delumeau foi levado a colocar a pergunta: "Qual é o futuro de Deus?" Ora, quando se ergue o debate à volta da crise actual do cristianismo e da Igreja, na difícil dialéctica cristianização-descristianização, há o perigo de esquecer que, contra o que frequentemente se pensa, antes do século XIV, a Europa, segundo, G. Duby, não apresentava senão "as aparências de uma cristandade. O cristianismo não era plenamente vivido senão por raras elites." Lutero também escreveu: "Temo que haja mais idolatria agora do que em qualquer outra época." Daí que Delumeau acentue a importância da actualização, também para se não cair em idealizações e dogmatismos. Por vezes, é preciso "desaprender", não idealizar o passado.
2. Qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. "Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa."
Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre os poderes religioso e político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que "o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equilíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente". De qualquer modo, "desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder". Ora, "esta deriva perigosa", que durante muito tempo só a poucos causou choque, ainda não terminou.
A Igreja Católica "tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder... Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque é necessário hoje aceitar e dominar evoluções inevitáveis".
Dever-se-á perguntar: como foi possível o movimento iniciado por Jesus ter hoje um Vaticano?! Seja como for, digo eu, a história é o que é e o que se impõe é uma revolução, para modos democráticos de governo eclesial, para a simplicidade, a transparência, o serviço. Cardeais e bispos não são "príncipes" nem podem viver como "faraós", diz Francisco. E as nunciaturas só poderão justificar-se enquanto serviços humildes de pontes para o diálogo e a paz mundiais.