Crónica de Anselmo Borges
no DN
Papa Francisco |
«A Igreja tem pela frente duas tarefas urgentes:
a da democracia e a do reconhecimento
da igualdade das mulheres.»
1-Na recente visita do Papa Francisco à América Latina, foi marcante, para dizer ao que vem este pontificado, o discurso no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Continuou a reclamar "os três t": terra, tecto, trabalho. "Disse e repito: são um direito sagrado." E que estava a falar não apenas de problemas da América Latina, mas de toda a humanidade: "Está-se a castigar a Terra, os povos, as pessoas, de um modo quase selvagem." É preciso "dizer não a uma economia de exclusão e iniquidade", assegurando que "o problema é um sistema que continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais elementares direitos económicos, sociais e culturais" e que este sistema "atenta contra o projecto de Jesus", já que o destino universal dos bens não é um adorno da doutrina social da Igreja, mas uma realidade anterior à propriedade privada. Arremeteu contra o "novo colonialismo que se esconde por trás do poder económico do ídolo dinheiro", lembrando que "a concentração monopólica dos meios de comunicação social, que pretende impor comportamentos alienantes de consumo e certa uniformidade cultural, é outra das formas que o novo colonialismo adopta. É o colonialismo ideológico". Sublinhou que o Papa e a Igreja não têm "uma receita para solucionar os graves problemas deste mundo", mas apresentou três tarefas urgentes: colocar a economia ao serviço dos povos, uni-los nos caminhos da justiça e da paz, salvar a mãe Terra. E terminou, pedindo: "Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum ancião sem uma velhice veneranda."
De regresso a Roma, já no avião, sublinhou que, quando diz que "esta economia mata", apenas prega o Evangelho e a doutrina social da Igreja. Sim, ouviu dizer que há críticas, nomeadamente nos Estados Unidos, a visitar em Setembro. Grupos conservadores dizem que é "o homem mais perigoso do planeta". E ele: "Devo começar a estudar estas críticas."
2-No Encontro, grupos de católicos, encabeçados pelo grupo Igreja - Povo de Deus - em Movimento (IPDM), entregaram uma carta com uma série de questões para uma Igreja diferente. Inspiro-me nesse conjunto de propostas.
Constatam o "indiferentismo do clero" e perguntam: há na Igreja uma real assunção do espírito de Francisco? Há empenho em fazer do Evangelho da Alegria "um referencial das práticas pastorais" ou predomina o silêncio, o desinteresse, a instalação no sossego mortal da comodidade?
É preciso garantir a participação dos padres e de leigos na nomeação dos bispos. Aliás, o problema, de modo mais genérico, é o da democracia na Igreja. Não vem de Jesus e do cristianismo a ideia de liberdade, de igualdade, de fraternidade? Como é que a Igreja pode pregar e exigir aos outros o que não pratica dentro dela: a doutrina dos direitos humanos? Urge pensar no que o Bensberger Kreis, um prestigiado grupo de leigos católicos alemães, disse já em 1970: "O ponto nevrálgico da crise do desenvolvimento da Igreja Católica no momento actual consiste em que no âmbito eclesiástico não estão em vigor os princípios da democracia moderna." O que é de todos tem de ser participado e decidido por todos.
Os seminários. "Constatamos expressivo número de seminaristas enamorados da sua carreira eclesiástica, como se percebe nas suas falas, nas suas vestes clericais ultrapassadas, no seu alinhamento com presbíteros carreiristas e amantes do dinheiro e no seu empenhamento medíocre nos estudos filosóficos e teológicos." Sugerem, pois, uma mudança radical nos seminários, a substituir pela experiência de "casas de formação" ligadas a paróquias, sob a responsabilidade de párocos sérios. E lamentam o "número significativo de seminaristas que querem, como seu horizonte eclesiástico, ser bispos". Na actual situação da formação dos futuros padres, não há o perigo de desenraizamento da vida real, de instalação cómoda, de alienação, numa existência fácil e idealizada?
Pede-se compreensão para a integração plena na vida da Igreja, incluindo a comunhão sacramental, dos recasados e dos homossexuais.
Impõe-se repensar a lei do celibato obrigatório. Aqui, pergunto eu: pode a Igreja impor como lei o que Jesus entregou à liberdade? O celibato enquanto lei não será contra a natureza humana? Já se pensou suficientemente na miséria humana, afectiva e moral, a que esta lei pode levar? Não poderá Francisco permitir a ordenação de homens casados "provados" e reintegrar padres que tiveram de abandonar o exercício do sacerdócio para se casar?
Os leigos têm de ver reconhecidos os seus direitos na Igreja. Aqui, também sou eu que digo: ao nível institucional, a Igreja tem pela frente duas tarefas urgentes: a da democracia e a do reconhecimento da igualdade das mulheres.