Reflexão de Georgino Rocha
«O facto histórico
tem um alcance simbólico excepcional.
A razão vê o facto.
A fé capta o alcance da realidade
contida no símbolo»
A multidão anda entusiasmada com Jesus. Nem sequer pensa nas suas necessidades básicas: descanso para a fadiga, casa para dormir, pão para alimento. A acção de Jesus e os seus ensinamentos exerciam uma sedução que compensava largamente tudo isso. E lá vai seguindo o Mestre que sobe ao monte, se senta compadecido por aquela gente e dialoga com os discípulos sobre o que fazer para lhe acudir e valer. Quer associá-los ao que vai fazer. E surge o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, a partir da “merenda” levada por um jovem. Jo 6, 1-15.
João, o autor da narrativa que hoje se lê na liturgia da Palavra, inicia um longo discurso/ensinamento de Jesus que continuará a ser proclamado nos próximos domingos. Constitui uma esplêndida catequese sobre a eucaristia, o pão e o vinho do trabalho humano, o corpo e o sangue do Senhor Jesus, entregue por todos e cada um de nós, a humanidade inteira.
O facto histórico tem um alcance simbólico excepcional. A razão vê o facto. A fé capta o alcance da realidade contida no símbolo. A razão é capaz de analisar os diversos elementos narrados: envolvimento dos discípulos, partilha do jovem, gestos de Jesus, acção concertada de distribuição do alimento pela multidão organizada em grupos. E deduzir orientações preciosas para minorar ou resolver problemas sociais aflitivos como a fome no mundo, a falta de água, as lideranças políticas e económicas, o abandono/descarte da maior parte da população face ao requinte do cuidado asfixiante de uma minoria fechada no seu bem-estar narcisista.
A fé reconhece a dimensão integral da pessoa, toda a pessoa, desvenda a realidade profunda que a constitui como ser em relação consigo mesma, com os outros, com a natureza e sua biodiversidade, com Deus que em Jesus se humaniza para nos abrir horizontes de plenitude. A fé não retira nada aos dados da razão e dá-lhes uma mais-valia pela dimensão ética que lhes reconhece e potencia, pelo sentido integral e integrante que lhes desvenda.
Tomai e comparti o que vos entrego. Organizai a multidão em grupos/associações de pessoas. Dai-lhes vós mesmos de comer. Recolhei as sobras. Que nada se perca… Palavras claras com orientações precisas… E todos ficaram saciados.
A Igreja quer viver o que proclama como Palavra da salvação. E, desde os começos, dedica uma atenção cuidada aos problemas das pessoas, ainda que em diversos graus de intensidade conforme as épocas históricas. Hoje, é, por excelência, a voz profética do Papa Francisco que dá o exemplo pelo seu estilo de vida, suas opções no terreno e seu jeito de elaborar e comunicar reflexões assertivas e implicativas.
“Sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre» … o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida. LS 50
E noutro número da encíclica sobre o cuidado de toda a criação reconhece que “Os meios actuais permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contacto directo com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento”. LS 47
“Dai-lhes vós mesmos de comer”. Lc 9, 13. Sêde a consciência da missão que vos confio. Bela e entusiasmante. E todas as suas fomes ficaram saciadas.