Crónica de Anselmo Borges
«O Papa Francisco
político-moral global,
universalmente reconhecida»
1. Não há dúvida de que o Papa Francisco é uma autoridade político-moral global, universalmente reconhecida. Impôs-se ao mundo pela simplicidade, pela bondade, pela entrega generosa ao bem da humanidade, a começar pelos mais pobres. Exemplo para todos os que exercem o poder. Com bondade e inteligência.
Muitos, porém, perguntam-se, com razão, o que poderá suceder a seguir ao seu pontificado. Não vai haver tentativas de restauração, como se ele tivesse sido apenas um parêntesis? Depois de reconhecer que o problema não é o papa, mas o papado absoluto, que exige reforma, com democracia real, divisão de poderes, escreve o teólogo José Arregi: "A reforma radical democrática será uma condição não suficiente, mas indispensável, para que a Igreja seja espaço de liberdade e de tolerância, lar de humanidade. Chegará até aí o Papa Francisco? O tempo corre contra ele."
2. A questão vem de longe. E lembrei--me de outro jesuíta famoso, Karl Rahner, que é, reconhecidamente, senão o maior, um dos maiores teólogos católicos do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor durante um semestre. Um dos principais impulsionadores e peritos do Concílio Vaticano II, assistiu depois, com preocupação e tristeza, ao início do restauracionismo eclesiástico, que lamentou como um "Inverno na Igreja".
No domínio da democratização na Igreja, já em 1970, num livrinho sobre Liberdade e Manipulação na Sociedade e na Igreja, Rahner exigia transformações claras e fundas, em ordem à fidelidade ao conteúdo central da mensagem cristã, que é a liberdade, a caminho da libertação plena.
Evidentemente, enquanto realidade histórica e social, também na Igreja se dá a tensão entre liberdade e manipulação, mas ela só se tornará credível se e na medida em que for um espaço de liberdade e libertação. "Por isso, o que em princípio e em caso de dúvida é necessário admitir como legítimo na Igreja é a máxima liberdade e não a manipulação."
É neste quadro que é preciso levantar toda a problemática da democracia na Igreja, do pluralismo teológico, dos erros do magistério, da não aceitabilidade de leis eclesiásticas, da reinterpretação da autoridade na Igreja, que "se situa na linha do desmantelamento das concepções de carácter feudalista e paternalista da autoridade e dos hierarcas, e na linha de uma compreensão funcional da autoridade. Esta funcionalidade deverá ser a chave de compreensão de todo o sentido da autoridade na Igreja."
Assim, por exemplo, "seríamos uns hipócritas se disséssemos que nos sentimos "queridos filhos e filhas" do papa ou dos bispos. Em termos muito simples, esta nova interpretação significa fundamentalmente que não é necessário demonstrar que a liberdade tem prioridade; significa igualmente que também na Igreja não pode dominar a mentalidade de que é proibido tudo o que não é expressamente permitido pelos superiores. Isto, por sua vez, significa que, portanto, é absolutamente legítimo que a partir de baixo se constituam "grupos de base" formados por leigos ou padres, cujo direito de existência não tem de depender necessariamente da aprovação positiva dos superiores".
A limitação quanto ao tempo de permanência nos cargos eclesiásticos, incluindo o papal, "é uma questão que deriva quase automaticamente, de modo quase evidente, da essência do cargo entendido como função de serviço". Só esta reinterpretação funcional da autoridade permitirá superar "a mentalidade institucionalizada dos bispos, que é, se nos é permitido falar assim, feudalista, descortês e paternalista". Ela "implicaria também que, na medida do possível, as decisões e as directrizes da autoridade eclesiástica fossem explicadas ao público mediante a apresentação dos seus fundamentos e razões" e que se voltasse a "pensar numa colaboração do povo na nomeação dos hierarcas".
No quadro da funcionalidade da autoridade, impõe-se reflectir sobre a opinião pública na Igreja e os contrapoderes. Assim, "a própria autoridade da Igreja deveria criar instituições que fossem contrapostas a ela e à sua dinâmica e que de algum modo servissem de instâncias de controlo da própria autoridade. Não é necessário ser adepto da divisão de poderes, de Montesquieu, ou da aplicação desta doutrina à Igreja, para considerar desejável algo semelhante". "Só quando tivermos um Sínodo nacional que eventualmente (iure humano) adopte decisões normativas que possam ser chocantes para um bispo; só quando, se for o caso disso, um bispo se submeter a um árbitro imparcial; só quando os conselhos presbiterais, os conselhos pastorais, etc., tiverem autonomia e eficiência frente aos bispos..., é que a relação entre liberdade e manipulação na Igreja será tranquila e ao mesmo tempo estará num movimento contínuo, que dissolverá, sempre de novo, o anquilosamento do meramente tradicional".
A Igreja está na história, que deve ser assumida dinamicamente e com um sentido direccional: o da liberdade, "cuja autoridade suprema é o amor".