Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO
Frei Bento Domingues |
1. A vontade de fixar certas interpretações, declarações, doutrinas e instituições religiosas como sendo absolutas, irreformáveis e definitivas — marcadas por tradições, contextos históricos e culturais muito circunscritos — roça a idolatria. Substitui o Absoluto transcendente pelo que há de mais relativo e banal, numa linguagem inacessível. Os textos do Novo Testamento (NT) mostram um constante empenhamento de Jesus em dessacralizar tempos, lugares e instituições divinizadas, pois tornavam o acesso a Deus privilégio de alguns e a condenação de quase todos.
O próprio Jesus, ao andar em más companhias, ao comer com os classificados como pecadores, não só se desautorizava como homem de Deus, como se expunha a ser considerado um agente do diabo[1]: Ele não expulsa demónios, a não ser por Beelezebu, príncipe dos demónios.
Jesus não era da tribo sacerdotal, não andou em nenhuma escola rabínica, não era um teólogo profissional e, no entanto, pôs tudo em causa[2].
Segundo os textos disponíveis, Jesus foi educado na religião da sua família, mas levou muito tempo a encontrar o seu próprio caminho e, quando o encontrou, os antigos companheiros não o entenderam, a família julgava que ele estava doido[3] e os Doze que escolheu nunca conseguiram compreender o seu desígnio.[4]
Como não deixou nada escrito, e muito menos um catecismo bem arrumado, surgiram várias teologias cristãs. Os escritos do NT são irredutíveis a uma só teologia ou a uma só cristologia. Ler esses textos de estilos, épocas, lugares e propósitos tão diferentes, pelo olhar formatado de um Catecismo, é uma cegueira provocada pelo instinto de segurança e necessidade de controlar. São textos simbólicos, alusivos ao mistério inabarcável de Deus, que só com recurso à teologia negativa, apofática, é possível não cair na idolatria teológica. De Deus, tanto mais sabemos quanto mais nos dermos conta de que ele excede todo o conhecimento. Nunca será prisioneiro dos nossos conceitos.
2. A falta de profissionalismo teológico está a agitar o Vaticano. Numa entrevista concedida ao jornal francês La Croix, o próprio Cardeal Müller — Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé (CDF), ex-Santo Ofício, Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e Presidente da Comissão Teológica Internacional —declarou algo de muito inédito: “A chegada à Cátedra de Pedro de um teólogo como Bento XVI foi, provavelmente, uma excepção. João XXIII não era um teólogo de ofício. O Papa Francisco também é mais pastor e a Congregação para a Doutrina da Fé tem uma missão de estruturação teológica do Pontificado”. Assim, pois, segundo a declaração deste cardeal, a CDF deve “estruturar teologicamente” o Pontificado do Papa Francisco. É provável que este seja um dos motivos pelos quais o Prefeito intervém tão frequentemente em público, algo sem precedentes na história.
Até agora, ninguém havia teorizado, a partir do próprio centro da Cúria Romana, uma exigência de normalização do pontificado, como se depreende das palavras citadas por Müller. Acredito que aqui se deva constatar, com preocupação, que esse parece ser, até agora, o mal-entendido mais substancial dos pontificados de João XXIII e de Francisco, curiosamente unificados pela característica de terem "pouca estrutura teológica".
3. Estamos numa situação delicada. Como vimos, Jesus não tinha nada de teólogo profissional, a sua profissão era outra. S. Francisco, ainda menos. João XXIII, convocando o Concílio e neutralizando a vigilância do cardeal Octaviani, do Santo Ofício, deixou o debate teológico à solta, decisão que nunca mais lhe será perdoada pelos vigilantes da ortodoxia. O pós-Concílio foi de uma grande efervescência e criatividade teológicas, tanto na Europa como na América latina, na África e na Ásia. Com o cardeal Ratzinger procurou-se a normalização pela condenação de tudo que não reproduzisse a teologia deste Prefeito da CDF.
Chegou o Papa Francisco e soltou, de novo, a palavra na Igreja e manifestou, numa carta à Faculdade de Teologia de Buenos Aires, a vontade de que os teólogos profissionais cheirassem a povo, não ficassem isolados numa redoma. Há atrevimentos que se pagam caro.
A ambição do poder de dominar — também há poder de servir — é presunçosa e ridícula. Quem se julga o centro da Igreja, perde-se do Espírito de Cristo e pensa que só ele tem a chave da salvação.
[1] Mt 12, 1-37:Mc 2-3;
[2] Mc 6, 1-5;
[3] Mc 3,20-21.31-35;
[4] Mc 10,35-45.