domingo, 15 de março de 2015

Uma religião que condena está condenada

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO

Frei Bento Domingues


1. Manifestei-me, desde muito cedo, contra certas representações da religião e em particular do catolicismo, mas tive sempre o pressentimento de que era na dimensão religiosa e de modo especial no cristianismo católico, liberto de pretensões exclusivistas ou inclusivistas, que estava escondida a alma do mundo, o impulso do amor da pura gratuidade e da infinita misericórdia.
Encontrei algumas pessoas que, desde a adolescência, me mostraram que as dúvidas e o questionamento são intrínsecos ao processo da fé cristã. Ninguém tem a verdade, mas é possível viver no horizonte da sua busca, com o contributo de todos os que a procuram, em todas as áreas de conhecimento, seja qual for o universo cultural e religioso. Tudo na vida é uma criação de possibilidades, de acontecimentos imprevisíveis. Nunca me dei bem com crenças inamovíveis, com o determinismo. 
Uma “religião” que se apresente como inimiga do questionamento, da investigação e da liberdade deve ser denunciada pelas pessoas e instituições religiosas, como ridícula blasfémia.


2. A religião como atitude pessoal e como fenómeno social, não começou ontem nem vai acabar tão cedo, apesar da fúria dos loucos do império islâmico e dos observadores apressados, mas não está condenada a ser como sempre foi. É um fenómeno imenso em todos os continentes, menos na Europa preconceituosa. Vê-se, agora, enredada em movimentos, instituições e acontecimentos com os quais não sabe lidar, não os pode eliminar e recusa-se a entender. 
Já na pré-história há indícios de religiosidade, a começar pela ritualização da morte, o que implica a existência de uma concepção simbólica, isto é, de um mundo feito de visível, invisível e imprevisível. Apenas no ser humano, e em nenhum outro ser vivo, se observa semelhante comportamento e tão extrema resistência simbólica.
Alguns investigadores e hermeneutas criaram a categoria de sagrado para caracterizar a ancestral atitude perante o “mundo tremendo e fascinante”. É a religião – subjectiva e objectiva – que o ritualiza e codifica. No âmbito da cultura latina, o termo religião, segundo Cícero, vem de reler, examinar com a atenção, isto é, não ser leviano na observação da complexidade da natureza, do ser humano e da sociedade. Para o cristão Lactâncio, a sua etimologia é mais construída e mais evidente: significa religar, como se os seres humanos reconhecessem que precisam de se religar a uma transcendência e uns aos outros, numa comunidade. O mediólogo, Regis Debray, analisou cuidadosamente a função política da religião, mostrando que a sociedade precisa de reunir os indivíduos através de algo invisível – seja ele qual for – que os transcende.
A consciência desenganada da nossa evidente finitude levanta a questão fundamental acerca do sentido da vida, sem resposta única para todos.
O grande filósofo pragmático, John Dewey, desejaria que o futuro da religião estivesse ligado à hipótese de desenvolvimento de uma fé nas possibilidades da experiência humana e na capacidade humana para estabelecer relações que criem um sentido vital da solidariedade dos interesses humanos e inspirem acções capazes de transformar esse sentido em realidade.


3. Em pouco tempo, Bergoglio tornou-se o pragmático da reforma da Igreja Católica. Não se ficou pelo Banco do Vaticano e pela Cúria Romana, apesar de todas as resistências aí instaladas. A hierarquia eclesiástica, as cúrias diocesanas, as conferências episcopais, as secretarias paroquiais podem, em muitos casos, tentar resistir à mudança. Sentem, no entanto, que o programa reformador do Papa e sobretudo os seus gestos, atitudes, discursos e pregações desorganizaram um mundo que, peça a peça, tinha sido construído para resistir aos que reclamavam reformas urgentes. Começam a sentir-se mal quando lhes dizem que o caminho do Papa Francisco é mais cristão do que o mundo de privilégios sacralizados. Gostavam de citar os Papas para manter a “ordem”. Agora sentem-se em desequilíbrio.
Os movimentos de leigos e, sobretudo os mais elitistas, que se julgam a verdadeira Igreja, a do futuro, não escapam às interpelações de Bergoglio. Ao caminho “Neocatecumenal” fez-lhe observações muito concretas para as correcções de rumo e de métodos, inscrevendo-o nas igrejas locais, de forma inculturada, vencendo as suas tentativas monopolistas.
Foi, porém, no encontro de 7 de Março, com o movimento Comunhão e Libertação – que se julgava um modelo de fidelidade a Roma na luta contra todos os desvios do catolicismo pós-conciliar –, que o Papa aproveitou para marcar o primado na moral cristã e fazer a denúncia da substituição da centralidade de Cristo pelo meu método espiritual, o meu caminho espiritual e o meu modo de o implementar. É uma forma de sair do Caminho e ficar com o carisma petrificado numa garrafa de água destilada, de se tornar guias de museu e adoradores de cinzas.
A Igreja, para encontrar o seu centro em Cristo, tem de sair para todas as periferias do mundo contemporâneo.
Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele.
O discurso está na íntegra, em italiano, no site do Vaticano. Que bom seria encontrá-lo em português, sem acordo!

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