Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO e hoje
Frei Bento Domingues |
1. A teologia católica, desde o Vaticano I (1869-1870) até aos anos 50 do séc. XX, expressa em diversas escolas, sentiu-se desafiada pelas várias expressões culturais da modernidade, mas foi sempre severamente vigiada e castigada pelo Santo Ofício.
A mentalidade tridentinista que o marcava e o pânico diante do chamado "modernismo" fizeram com que muitas pessoas e algumas faculdades de teologia fossem severamente vigiadas, castigadas e silenciadas.
Em geral, tentavam responder ao primordial apelo de S. Pedro: capacitar-se para dar razão da esperança cristã (1Pd.15) na actualidade, segundo as solicitações dos "sinais dos tempos". Partiam de uma convicção teológica óbvia: aquilo que não fosse capaz de exprimir a fé, nos vários contextos do presente, era uma traição ao Novo Testamento e à verdadeira Tradição, que passou a ser cada vez mais investigada, para não ser abafada pelas florestas de tradições em expansão.
A cultura, para se manter viva, tem de assumir a tradição nas expressões mais significativas dos panoramas culturais em mudança. Foram as pessoas e as instituições mais castigadas que abraçaram, com mais entusiasmo, o espírito do aggiornamento de João XXIII. Essas tendências conseguiram, marcar o Vaticano II. A revista internacional, Concilium, continuou até hoje esse caminho, sem qualquer exclusivismo.
Diz-se que as turbulências pós-conciliares resultaram, em parte, do rápido desabrochar das teologias políticas e contextuais: europeias, latino-americanas da libertação, asiáticas, africanas, feministas, hermenêuticas, da inculturação do diálogo inter-religioso, etc. É verdade. Mas o que será uma teologia sem contexto espiritual, eclesial, religioso e cultural, isto é, sem mundo, quimicamente pura?
O cristianismo tornou-se rapidamente multiétnico, mais católico. A verdade cristã realiza-se na inculturação e adultera-se no colonialismo religioso. A lei do diálogo é simples: quem dá, recebe e quem recebe, dá. Em suma: o catolicismo é colorido e as suas teologias também.
2. A Constituição Apostólica de João Paulo II sobre as Universidades Católicas (1990) destaca o papel que a teologia e as faculdades de teologia devem desempenhar nessas instituições. Não lhes compete, apenas, contribuir para o diálogo entre fé e razão, como é óbvio. Devem dar um contributo especial na promoção da interdisciplinaridade para uma visão orgânica da realidade, estabelecendo a interacção entre as outras disciplinas da universidade (Cf. nos 18-20;46-49). Entretanto, durante o tempo do Cardeal Ratzinger, à frente da Comissão para a Doutrina da Fé, não se descansou enquanto não foram reduzidos ao silêncio os teólogos que não reproduziam o pensamento e estilo do Prefeito. O papel questionante da teologia, no seio da cultura universitária, ficava neutralizado. A Profissão de Fé e o Juramento de Fidelidade, exigidos aos professores de teologia – e não só –, não merece comentários, mas não ficaria mal num relicário.
3. Quem diz que na Igreja nada mudou mostra que ainda não se actualizou. Anda desfasado da realidade.
No discurso que o Papa Francisco fez aos membros da Comissão Teológica Internacional (05.12.2014), ao saudar a presença de algumas mulheres, destacou a sua contribuição específica para a interpretação da fé e o seu génio para aprofundar certos aspectos inexplorados do mistério insondável de Cristo.
Por ocasião do centenário da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina (UCA) (03.03.2015), Bergoglio enviou ao seu Chanceler uma carta que não pode ser ignorada. Vou destacar alguns pontos.
Varre décadas de medos que levou a teologia a esgotar-se em disputas académicas e a olhar para a humanidade a partir de um castelo de vidro. Neste tempo, a teologia também deve enfrentar os conflitos: não só os que experimentamos na Igreja, mas também os relativos ao mundo inteiro e que são vividos pelas ruas da América Latina.
Não vos contenteis, diz o Papa, com uma teologia de gabinete. Sejam as fronteiras o vosso lugar de reflexão. Não cedais à tentação de as ornamentar, perfumar, consertar nem domesticar. Até os bons teólogos, assim como os bons pastores, cheiram a povo e a rua. Com a sua reflexão derramam azeite e vinho sobre as feridas humanas. Que a teologia seja a expressão de umaIgreja-hospital de campanha.
A misericórdia não é só uma atitude pastoral, mas a própria substância do Evangelho de Jesus. Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, a nossa pastoral correm o risco de desmoronar na mesquinhez burocrática ou na ideologia.
Tudo somado, quem é o estudante de teologia que a UCA está chamada a formar? Não é um teólogo de museu, que acumula dados e informações sobre a Revelação sem saber o que fazer deles, nem um mirone da história, mas uma pessoa capaz de construir humanidade à sua volta, transmitir a verdade cristã em dimensão humana. Não o intelectual sem talento, o éticista sem bondade, o burocrata do sagrado.
O Papa escreveu à UCA, mas o que disse deveria interrogar as faculdades de teologia de todo o mundo. Sentem-se os teólogos das universidades europeias interrogados pela crise que afectou, sobretudo, os países do sul? Que misericórdia manifestou a Alemanha, pátria da teologia?