Crónica de Anselmo Borges
No contexto dos debates sobre a família no Sínodo e de alguns pronunciamentos oficiais de responsáveis da Igreja, pouco adequados, sobre o feminismo e teorias de género, deixo algumas reflexões sobre o tema, retomando ideias expandidas no prefácio que escrevi para Vagina, de Naomi Wolf, uma feminista considerada da terceira vaga
1. Os seres humanos são o que são enquanto produto inextirpável de uma herança genética e de uma cultura em história. Será muito difícil destrinçar exactamente o que pertence à natureza e o que pertence à cultura. A questão agrava-se no que se refere à tentativa de definir o masculino e o feminino.
Afinal, o que pertence à biologia e o que pertence à cultura? O que é "natural" e "não natural"? Biologicamente, os seres humanos estão divididos em machos e fêmeas, tendo aqueles um cromossoma X e um cromossoma Y e estas dois X. Mas os homens e as mulheres acabam por ser definidos mais por categorias sociais do que propriamente biológicas, sendo elas que determinam os papéis, os direitos e os deveres masculinos e os femininos, de tal modo que o significado de "masculinidade" e "feminilidade" é diferente segundo as sociedades. Em termos académicos, funda-se aqui a distinção entre "sexo" enquanto determinação biológica e "género" enquanto categoria histórico-cultural. As qualidades baseadas no sexo biológico são objectivas e constantes; as de género admitem variações e diferenças profundas ao longo da história e de cultura para cultura.
Um exemplo inofensivo, apresentado pelo historiador Yuval Harari, que estou a seguir, na sua obra De Animais a Deuses, ao escrever sobre o tema e as injustiças da História, que estabelece arbitrariamente hierarquias imaginadas, nomeadamente "uma de suprema importância: a hierarquia de género". Repare-se no famoso retrato oficial do rei Luís XIV e na longa peruca, nas meias, nos sapatos de salto alto, na postura de dançarino. No seu tempo, o rei-sol era considerado o modelo da masculinidade e virilidade, mas hoje, na Europa, por exemplo, todos esses elementos (com excepção da espada) seriam considerados características de feminilidade.
Ser do sexo masculino ou feminino é simples: XY ou XX. Mas tornar-se homem ou mulher é mais complicado. De qualquer modo, a pergunta é: porque é que as sociedades têm sido em geral patriarcais, valorizando mais os homens do que as mulheres? Que têm os homens de especial?
Não vamos aqui aprofundar a com- plexidade desta questão. Mas há um facto inegável: durante o século passado, os papéis dos géneros passaram por uma tremenda revolução. Um exemplo, dado por Harari: quando em 1913 o público norte-americano ridicularizou as mulheres que exigiam o direito do voto, "quem teria sonhado que, em 2013, cinco juízes do Supremo Tribunal dos EUA, três deles mulheres, decidiriam a favor da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo (indeferindo as objecções de quatro juízes do sexo masculino)?".
2. As religiões, particularmente as monoteístas, têm responsabilidades especiais no patriarcalismo, não só dentro delas próprias mas também por causa do reforço patriarcal que exercem noutros domínios. Pense-se nomeadamente no Islão e na Igreja Católica. Não vou reflectir sobre as desgraças das mulheres devidas ao Islão ou ao que dele fizeram. Fixo-me por agora na Igreja Católica. Esta é hoje a única instituição verdadeiramente global, mas ferida pela submissão das mulheres e pelo não reconhecimento da igualdade de direitos com os homens. Jesus tratou bem as mulheres e elas podem e devem estar-lhe gratas, pois foi alguém que contribuiu de-cisivamente para a sua história de emancipação libertadora. Quanto à Igreja, porém, compreende-se a sua crítica e mal-estar. As lutas gnósticas e a sua influência negativa, a doutrina do pecado original e as suas consequências, nomeadamente na compreensão da Eucaristia interpretada como sacrifício, exigindo a pureza ritual, a Igreja constantiniana enquanto instituição de poder levaram a uma discriminação das mulheres que não é de modo nenhum consentânea com o Evangelho de Jesus.
Algumas tradições judaicas falam do mito de Lilith. Conta-se que Deus, antes de Eva, primeiro criou Lilith. Feita do mesmo barro, recusou-se a submeter-se a Adão e acabou por fugir do Paraíso. Apesar da intervenção de Deus para que voltasse, Lilith recusou renunciar à sua liberdade e viver subordinada ao homem. Essa inaudita ousadia tornou-a responsável pelos males do mundo. Mas, afinal, não acabaram Eva e as suas filhas por arrostar igualmente com a responsabilidade pelos males e com o castigo?
Fica claro que, em ordem à sua identidade de pessoa enquanto mulher, é preciso contar com o sexo biológico, mas são igualmente decisivas a cultura, a história, a educação, as normas sociais, a religião.
Aí está um conjunto de questões que exige uma nova reflexão por parte da Igreja e da sociedade em geral.