Crónica de Anselmo Borges
no DN
Anselmo Borges |
1. Como tinha anunciado, o Papa celebra hoje e amanhã no Vaticano a cerimónia de criação de vinte novos cardeais, dos quais, porque têm menos de 80 anos, quinze são eleitores do novo Papa, num eventual conclave. Anteontem e ontem, Francisco examinou com o Colégio Cardinalício, uma espécie de Senado da Igreja, que agora representa 73 países de todo o mundo, a reforma da Cúria Romana, desafio fundamental. De facto, sem uma reforma radical, consistente e duradoura, "constitucional", da Cúria, não se cumprirá uma tarefa essencial para Francisco.
Como já tinha acontecido na primeira nomeação de novos purpurados, há um ano, Francisco fez questão de abandonar critérios tradicionais de escolha. Assim, ficaram sem cardeal grandes cidades como Veneza e Bruxelas e só um membro da Cúria ascendeu ao cardinalato. Mas o arcebispo de Santiago, Arlindo Gomes Furtado, tornou-se o primeiro cardeal de Cabo Verde na história, o arcebispo de Rangun, o primeiro cardeal birmanês, como o bispo de Tonga é o primeiro proveniente do arquipélago de Tonga e também, com 53 anos, o mais jovem do Colégio. A América Latina fica representada por mais três cardeais, e a Ásia também com mais três.
A partir de hoje, a assembleia dos cardeais conta com 228 membros, dos quais 125 são eleitores: 57 provêm da Europa, 17 dos Estados Unidos e Canadá, 19 da América Latina, 15 da África, 14 da Ásia e três da Oceânia. Deste modo, Francisco cumpre dois objectivos do seu pontificado: por um lado, o desígnio de uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja das e para as periferias; por outro, a descentralização, correspondendo aos novos equilíbrios do mundo e da Igreja, cada vez menos eurocêntrica e cada vez mais policêntrica. Nas nomeações, também não é indiferente a proximidade de pontos de vistas do próprio Francisco. Neste sentido, mandou fazer um estudo para aumentar o número de cardeais eleitores para 140, portanto, paralá dos 120 permitidos pela Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis,de João Paulo II: "O número máximo de cardeais eleitores não deve superar os cento e vinte."
2. Francisco não se cansa de prevenir os cardeais contra as tentações do orgulho e da ostentação: "O cardinalato não significa promoção, honra ou condecoração. É simplesmente um serviço que exige ampliar a visão e engrandecer o coração. E, embora pareça um paradoxo, este poder ver mais longe e amar mais universalmente com maior intensidade só se pode obter seguindo o caminho do Senhor: o caminho da humildade, fazendo-se servo." O que lhes pede é que possam ajudá-lo com "fraterna eficácia" no seu serviço da Igreja universal.
Na sua imensa delicadeza, pede-lhes, "por favor", que aceitem esta nomeação com "um coração simples e humilde", longe de "qualquer expressão mundana, de qualquer celebração alheia ao espírito evangélico de austeridade, sobriedade e pobreza".
Esta foi a mensagem no primeiro consistório, que repetiu aos novos cardeais: sendo o seu cargo "um serviço", que o aceitem "com humildade" e evitem "o espírito mundano". "Manter-se com humildade durante o serviço não é fácil, quando se considera o cardinalato como um prémio, como o culminar de uma carreira, de uma dignidade de poder e de uma distinção superior." Recordou-lhes que "ser cardeal significa dar testemunho da Ressurreição do Senhor e dá-lo totalmente, até ao sangue se for necessário". É, pois, bom que se alegrem com esta nova vocação e celebrem, porque é próprio do cristão "desfrutar e saber festejar". Mas é preciso que, nestas festas, "se não insinue o espírito mundano, que atordoa mais do que a aguardente em jejum, desorienta e separa da cruz de Cristo".
3. Como aqui tinha escrito, não constituiu surpresa a nomeação do patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, que será agora referido como cardeal-patriarca de Lisboa.
Pelo facto de o ser, torna-se conselheiro especial do Papa Francisco e assume a responsabilidade de eleitor e elegível papal. Na Igreja em Portugal, não fica, formal e juridicamente, com mais poderes. Ao contrário de algumas ideias feitas, o cardeal-patriarca não é o chefe da Igreja em Portugal. Ele tem na sua diocese os poderes que qualquer bispo tem na dele.
Na prática, as coisas são mais complexas. De facto, o cardeal-patriarca vive na capital, e, portanto, está mais próximo do poder central. Assim, espera-se que seja mais interventivo, para uma política mais favorável à justiça social e ao bem comum, e crítico na denúncia da corrupção e das cumplicidades do poder político e do poder económico-financeiro. Para isso, com os outros bispos, zelará por uma Igreja, ela própria mais livre e independente desses poderes. Ainda neste quadro, sendo magno chanceler da Universidade Católica, muitos católicos desejam que intervenha no sentido de, concretamente na investigação e ensino nos domínios da economia, finanças e gestão, a doutrina social da Igreja estar mais presente.