domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mudar radicalmente a religião (1)

Crónica de Frei Bento Domingues 
no PÚBLICO



Os caminhos de Deus não se podem 
confundir com os de uma só religião



1. Não tive condições para seguir as cerimónias que envolveram a nomeação dos novos “príncipes da Igreja”. Um amigo, pouco dado a críticas à hierarquia eclesiástica, manifestou-me, no entanto, o seu desapontamento. Daquilo tudo, só as palavras do Papa estavam ajustadas a um programa de reforma da cúria e da Igreja.
Seria arcaico exigir dos novos cardeais vestes parecidas com as do carpinteiro de Nazaré. Mas aquele espectáculo era a reprodução de sempre do mau gosto purpurado. As delegações portuguesas, ao convidar o Papa para vir a Fátima, revelaram pouca imaginação e, até parece, uma oposição ao seu programa.
Seja como for, importa redescobrir o papel das religiões no mundo, na Europa e em Portugal. O que as terá anestesiado para que, durante estes anos todos de miserável humilhação dos povos do Sul da Europa e de transformação do Mediterrâneo num cemitério medonho, não tenham suscitado um imenso movimento de resistência não violenta?
Sobre o papel das religiões existem as posições mais desencontradas. Comecemos por uma das mais negativas:

“Os três monoteísmos, animados pela mesma pulsão de morte genealógica, partilham uma série de desprezos idênticos: ódio da razão e da inteligência; ódio da liberdade; ódio de todos os livros em nome de um só; ódio da vida; ódio da sexualidade, das mulheres e do prazer; ódio do feminino; ódio dos corpos, dos desejos, das pulsões. Em lugar de tudo isso, judaísmo, cristianismo e islão defendem: a fé e a crença, a obediência e submissão, o gosto da morte e a paixão do além, o anjo assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe, a alma e o espírito. Em suma: a vida crucificada e o nada celebrado.” [1]

2. Não podemos avaliar o alcance da revolução teológica do Vaticano II sem saber de onde viemos, como instituição.
Não há prestidigitação hermenêutica engenhosa que possa transpor o hiato que separa os ensinamentos oficiais sobre as religiões não cristãs dos dois concílios ecuménicos ou gerais, o de Florença (1438-1445) e o Vaticano II (1962-1965). A mudança é de 180º.
No Concílio de Florença, depois de se mostrar a superação do judaísmo com o advento de Cristo, resume-se a sua posição no axioma bem conhecido e muitas vezes repetido - extra ecclesiam nulla salus – fora da Igreja não há salvação. A explicitação não pode ser mais radical nem mais assustadora: “A Igreja crê firmemente, confessa e anuncia que nenhum dos que estão fora da Igreja católica, não só os pagãos, mas também os judeus, os hereges e cismáticos, poderão chegar à vida eterna, mas irão para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos [Mt 25,41], se antes da morte não tiverem sido a ela reunidos.” [2]
A partir do Vaticano II, o ecumenismo, a liberdade religiosa e o diálogo inter-religioso passam a fazer parte da doutrina oficial da Igreja, dentro de uma concepção plural da própria teologia católica, embora com diversas interpretações e muitos ziguezagues.
A verdade no diálogo exige o reconhecimento do pluralismo religioso como um valor, um novo paradigma para o pensamento e para a prática pastoral. Se tomarmos a sério a diversidade religiosa não pensaremos em anexar nem em dominar os outros. A prática da hospitalidade religiosa é o caminho para evitar o proselitismo e a violência ou a mera tolerância. Os caminhos de Deus não se podem confundir com os de uma só religião. Seria impor-Lhe as nossas concepções de vida e de salvação. As religiões só têm a ganhar deixando-se interpelar mutuamente em ordem a uma aliança para a abertura ao mistério divino que nenhuma pode abarcar e para se colocarem ao serviço de todos os seres humanos, sobretudo dos excluídos.

3. Nada disto é possível sem que as próprias religiões consintam em entrar num processo de conversão. Se persistirem na ideologia de que são elas a salvação e que Deus só passa por ali, estão condenadas, por mais que julguem que estão a aumentar a sua influência. Como dizia Jesus Cristo, são meras associações de cegos a conduzir outros cegos. Diante da loucura assassina da ideologia religiosa, o presidente egípcio Al-Sisi, em Al-Azhar e perante as autoridades religiosas, teve a coragem de dizer, alto e bom som: nós devemos mudar radicalmente a nossa religião [3].
O Papa Francisco assumiu o programa do Vaticano II e em vez de atenuar a urgência e a profundidade que ele implica, venceu 50 anos de hesitações e descaminhos para o radicalizar a partir do cimo da pirâmide, socavando-lhe os falsos alicerces, para que o governo da Igreja veja o mundo a partir dos excluídos, dos habitantes de todas as periferias. Com um critério: não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial.
Terei de voltar a esta espantosa homilia do Domingo passado, dia 15.


[1] M. Onfrey, Traité d’ athéologie, Paris, Grasset, 2005
[2] Peter C. Phan, Diálogo inter-religioso: 50 anos após o Vaticano II, Cadernos Teologia Pública, ano XI, nº 86, vol. 11, 2014.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=NJfnquV7MHM




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