no PÚBLICO de domingo
Bento Domingues |
1. Há vantagens em não se julgar infalível. A primeira de todas talvez seja esta: o mundo não começou comigo nem vai acabar quando eu morrer. Os que jogaram ou jogam na ficção da infalibilidade gostariam de parar o tempo que vai medindo todas as mudanças. A verdade, no entanto, nunca é uma posse definitiva, mas um horizonte irrenunciável que exige um trabalho nunca acabado. A busca da “teoria de tudo”, para explicar o universo, pode ser um grande motor de investigação, mas por enquanto ainda vive no campo dos sonhos fecundos.
Há pessoas e instituições que retardam, quanto podem, as mudanças. A chamada cultura tradicional procura assegurar a reprodução do passado no futuro. O método era o da iniciação das crianças nas teias do passado e acrescentar-lhes um feitiço, um tabu, que desgraçaria a vida de quem violasse essa herança. A cultura moderna coloca o acento na inovação do conhecer e do fazer: fazer acontecer o que nunca tinha acontecido e libertar o horizonte de preconceitos.
Se há pessoas e instituições apostadas em retardar as mudanças, existem outras que as aceleram. O dogma da infabilidade papal, no século XIX, pretendia parar o tempo, barrar o caminho a mudanças, sobretudo na Igreja, mesmo fora do âmbito restritíssimo da aplicação desse dogma. O importante era criar, nas pessoas e nos grupos, a ideia sub-reptícia de que tudo o que vinha de Roma trazia o carimbo da infalibilidade. Ressuscitava-se o adágio: Roma falou, assunto encerrado. Roma locuta, causa finita.
2. Este estilo serviu, maravilhosamente, para envenenar a questão dos ministérios ordenados das mulheres, nos anos 80-90 do século passado. Já no tempo de Paulo VI, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) tinha apresentado as razões para impedir a admissão das mulheres ao “sacerdócio ministerial” (15.10.76).
João Paulo II reitera os mesmos argumentos em 1988, mas perante a situação de debate aberto, enviou uma Carta Apostólica ao episcopado (1994), concluindo: Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja.
De facto, Roma locuta, mas a questão não ficou nada arrumada. Em 1997, a CDF teve de responder se sim ou não esta declaração papal tinha carácter infalível. A resposta é “embrulhada” e vai dar lugar a novas interpretações. J. Ratzinger, no seu comentário, diz que não se trata de um acto nem de uma definição solene ex cathedra. Salienta, no entanto, que é definitiva e irreformável. Seja como for, a resposta da CDF não pode ter carácter de infalibilidade!
Com todas estas subtilezas, a ordenação sacerdotal, umas vezes ultra valorizada, outras vezes nem por isso, esquece-se que, no Novo Testamento, o vocabulário sacerdotal só se aplica a Cristo e ao conjunto dos cristãos, ao povo sacerdotal. O resto são ministérios, “ordenados” ou não, que vão variando com o tempo.
3. Não existem apenas pessoas e instituições para travar a inovação. Na onda do Papa Francisco, que já se tinha admirado e lamentado de ver tão poucas mulheres na Comissão Teológica Internacional, realizou-se, em Roma, entre 4 e 7 deste mês, a assembleia plenária do Pontifício Conselho da Cultura (PCC). No momento em que escrevo, não posso saber o que daí irá resultar.
Não é preciso destacar a importância do tema, As culturas femininas: igualdade e diferença. Alegra-me que o instrumento de trabalho tenha sido elaborado por um grupo de 12 mulheres italianas, de reconhecido prestígio no mundo da arte, da comunicação ou da universidade, como foram apresentadas.
O quarto ponto desse texto aborda o papel das mulheres na Igreja. Depois, volta-se para a crise que se vai afirmando a partir das mais jovens. Verifica que, no Ocidente, as mulheres entre 20 e 50 anos vão menos à missa, optam cada vez menos pelo matrimónio religioso, poucas seguem uma vocação religiosa e, em geral, mostram uma certa desconfiança pela capacidade formativa dos homens religiosos, diríamos, do clero.
Com efeito, eles afirmam-se a partir de um lugar, de uma posição e com uma autoridade que os leva a julgarem-se superiores às mulheres. Se assim não fosse, eles não estariam onde estão e elas não teriam de verificar que, na Igreja, há serviços, ministérios, de que as mulheres, por serem mulheres, estão excluídas.
Os homens da Igreja têm uma imagem da mulher que, no geral, já não corresponde à realidade. As mulheres já não passam a tarde a rezar o terço ou em devoções piedosas. Muitas são trabalhadoras, directoras ocupadas como os homens, ou até mais, pois, muitas vezes, recai especialmente sobre elas o cuidado da família. São mulheres que alcançaram, quase sempre com muito esforço, postos de responsabilidade e prestígio na sociedade e no mundo do trabalho, às quais não corresponde nenhum papel de decisão ou de responsabilidade na e para a comunidade eclesial.
Veremos o que a assembleia do PCC tem para nos dizer, de novo e sem infalibilidade nenhuma.