Reflexão de Georgino Rocha
Cafarnaum (ruínas) |
«E hoje, que forças ocultas ou evidentes mantém as pessoas manietadas e oprimidas, as sociedades fragilizadas, os estados impotentes, as confissões religiosas ensonadas e a(s) Igreja(s) incomodada(s)?»
Chegado a Cafarnaum, Jesus vai à sinagoga, como bom judeu, e, convidado a comentar as leituras, adopta um estilo próprio, distanciando-se do método tradicional. Mc 1, 21-28. Não cita nenhum dos famosos rabis, como era de “bom-tom” para credenciar a sua homilia. O que disse, Marcos não o regista, mas não andará longe, como noutras passagens se afirma, de algo parecido com o que Mateus conserva na sequência do sermão da montanha (5, 21-48). Jesus reinterpreta, com autoridade pessoal — e que autoridade! — , o sentido das escrituras e manifesta o seu conteúdo oculto e inédito. Autoridade que é liberdade de ensino e relação, poder de comunicação, legitimidade de acção. Autoridade que lhe vem não do apoio popular nem da força das armas ou do prestígio social ou do voto democrático, tantas vezes manipulado. A fonte é outra como se verá a seguir.
Os ouvintes ficam admirados com aquela novidade e interrogam-se sobre o seu alcance: “Que vem a ser isto? Até os espíritos imundos lhe obedecem! O que estes intuem, declara-o, convictamente, o possesso endemoniado: “Tu és o Santo de Deus”. E de forma interrogativa/afirmativa acrescenta: “Vieste para nos perder?” E o “diabo” disse a verdade!
A novidade é manifesta, não apenas em palavras, mas em gestos de proximidade e de cura. O endemoniado sente-se liberto de tudo o que o oprime: doença, exclusão, forças maléficas. A sua presença na sinagoga e a sua intervenção pública causam certa estranheza e revestem uma enorme carga simbólica. Será o “retrato” da situação religiosa que é necessário superar? Talvez. A troca de palavras – não chega a ser diálogo – entre ele e Jesus parece indiciar algo parecido. O confronto com as forças do mal, personificadas em espíritos imundos ou possessos, irá ser uma constante na missão do Nazareno e, a partir dele, na vida e acção dos seus discípulos e da sua Igreja. A autoridade do Santo de Deus consiste na entrega gratuita, no abraço solidário, na comunicação livre e autêntica, na proximidade amiga e benfazeja. A sua vida credencia a palavra hoje anunciada e a missão agora “desenhada” e progressivamente realizada.
Outrora, aquelas forças “disfarçavam-se” em pessoas possuídas por tendências naturais incontroláveis ou por desvios humanos notórios, pela influência de seres estranhos ou de espíritos demoníacos. As ciências do conhecimento biológico e médico ainda não estavam desenvolvidas a ponto de identificarem a origem destas perturbações esquisitas. Mas os seus efeitos, sim; estão bem patentes no estigma social típico de todo o endemoniado, na marginalização religiosa a que era votado o doente, no estatuto de excluído da sociedade; por isso, a sua condição não contava nem valia nada, não merecia qualquer consideração.
E hoje, que forças ocultas ou evidentes mantém as pessoas manietadas e oprimidas, as sociedades fragilizadas, os estados impotentes, as confissões religiosas ensonadas e a(s) Igreja(s) incomodada(s)? Parece claro que refazer o sistema que provocou e mantém esta crise global é pretender continuar o “fabrico” de empobrecidos em número crescente e o espezinhamento da sua dignidade, a multidão de silenciados e manipulados que tardam a tomar a palavra, a legião de indignados que tentam fazer ouvir a sua voz e a razão que lhes assiste. A base da pirâmide social alarga-se cada vez mais. E o topo superior afunila-se progressivamente.
As alternativas vão-se esboçando e dão passos que alimentam a esperança. Adquirem maior visibilidade os projectos que visam a mudança de mentalidade e a conjugação de esforços em torno da economia solidária, da participação activa, da responsabilidade de cada um face ao bem de todos. Que bom seria, se o critério de acção fosse a novidade trazida por Jesus de Nazaré apresentada de forma inaugural na sinagoga de Cafarnaúm: entrega gratuita, proximidade solícita, abraço solidário, comunicação livre e autêntica, proclamação da verdade. E as homilias bem como o ensino/aprendizagem teriam outra eficácia e seriam mais apreciadas.