Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias de sábado
1. Tenho aqui escrito muitas vezes que, ao contrário do q ue se pensa, fé e acreditar não são em primeiro lugar categorias religiosas. Trata-se do fundamental da existência, no sentido de que, sem fé, crédito, confiança, ninguém pode viver bem. O que mais falta faz no país não é precisamente a confiança e o crédito? A nossa vida está baseada, em todos os domínios, na confiança (vem de fides, fé) e no crédito (vem de credere, crer, acreditar) que damos aos outros e à vida e que eles nos dão a nós, de tal modo que podemos crer e confiar em nós próprios, abrindo futuro pessoal e colectivo.
Assim, a crise em que o país está mergulhado é a pior, porque minou a confiança. No meio deste lamaçal, em quem se pode confiar?
2. A nossa tragédia está aqui: perdemos o essencial. E o essencial somos nós mesmos. Os seres humanos somos constitutivamen- te abertos à questão ética. De facto, dada a neotenia - nascemos por fazer-, a nossa tarefa essencial, diria mesmo a única, no mundo é fazermo- -nos a nós próprios. Sendo livres, fazermo-nos moralmente bem. Temos a experiência de sermos dados a nós próprios. Assim, somos donos e senhores de nós mesmos - essa é a experiência radical da liberdade -, de tal modo que, no fim, desta tarefa de nos fazermos - e é sempre o que está acontecer: fazendo o que fazemos, estamos a fazer-nos a nós próprios - tanto pode resultar uma obra de arte como uma porcaria (desculpe-se a expressão, mas ela é a que traduz a realidade). Isto, individualmente e também colectivamente, pois fazemo-nos sempre em comunidade e sociedade. Desgraçadamente, é a segunda alternativa que nos está a acontecer.
3. 0 que é que se impõe então com toda a urgência? Uma conversão moral. Cada uma, cada um, tem de assumir-se a si mesma, a si mesmo, na sua intrínseca tarefa: realizar-se na dignidade. Temos de habitar o mundo eticamente (um dos étimos da nossa palavra ética é êthos, que significa morada).
Precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele o monopólio da violência, porque não somos todos éticos.
Se todos fossem éticos, segundo a ética desinteressada, no quadro do fazer-se bem moralmente a si próprio, não era necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir de modo não violento os conflitos. Como escreve o filósofo A. Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas, de prisões.
"Não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico"
Deste modo, entende-se que ética e política não se identificam nem confundem, mas os seus objectivos são os mesmos: a realização verdadeiramente humana da humanidade de todos. Mas, precisamente aqui, uma vez que a política aparece como necessária, porque não somos éticos, surge o núcleo da questão: como encontrar políticos que sejam precisamente políticos, mas com ética?
Retomo o que já aqui tenho defendido. O grande desafio do nosso tempo é a formação ética, moral (uso aqui os termos como idênticos, sem as distinções que tecnicamente se imporiam), para os valores, que não se esgotam nem se identificam com o dinheiro e a riqueza, embora o valor dinheiro seja necessário. Quando isso não acontece, remetemos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais... Ora, neste quadro, fica-se confrontado com questões temíveis. Primeira: não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico. Depois, seja como for, sem ética assumida - e acrescentaria: sem referência religiosa ao Absoluto -, fica apenas a lei e a sua sanção, o medo e a esperança de não se ser apanhado. Por exemplo, corrompe-se, é-se corrupto, não se paga impostos, precisamente na esperança de não se ser apanhado: se isso acontecer, tanto pior... De qualquer forma, nesta lógica, sem valores éticos assumidos, acaba, no limite, por ser necessário colocar um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei, mas, como os polícias também são humanos, é preciso pôr um polícia junto de cada polícia. O totalitarismo no meio de um lamaçal! Juvenal viu bem: Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes? (A guarda guarda-nos. Quem guardará a própria guarda?).
4. É extraordinário, não deixando mesmo de ser paradoxal e estranho, que, precisamente no meio do lamaçal em que nos afundamos, seja notícia três trabalhadores anónimos da recolha de lixo da Câmara da Póvoa de Varzim terem, honradamente, entregado no respectivo serviço a quantia de 4400 e tal euros que encontraram num contentor. E ouvi-os dizer, na sua simplicidade honrada: foi isto que nos ensinaram em casa e na escola, quando éramos miúdos.
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