Crónica de Maria Donzília Almeida
A festa da Páscoa, para o mundo cristão representa a vitória sobre a morte, consubstanciada na ressurreição de Cristo.
Coincidindo com o início da primavera, sente-se uma envolvência da natureza, numa súbita transformação da mesma. Esta que estivera em hibernação durante a estação cessante, desperta para a vida e em nosso redor é vê-la a desabrochar e encher-se de cor.
Antigamente, quando as Gafanhas viviam, em parte, da agricultura e as mulheres eram as maiores protagonistas do trabalho nos campos, a limpeza da casa ficava sempre em segundo plano. Aproveitava-se a pausa da Páscoa, em que as sementeiras estavam feitas e o sol começava a puxar por elas e fazia-se uma limpeza geral às casas. Quase todas revestidas a soalho de madeira e muito humildes no seu recheio, assumiam uma nova vitalidade e asseio nesta altura. Para esse efeito, era ver a dona de casa, mulher escafonada, pôr o chão a brilhar com o tradicional sabão amarelo, que p’ra mim, era mais cor de tijolo.
Aqui, nas Gafanhas, a sala do Senhor mobilada apenas com uma cómoda e cadeiras, à volta, ganhava protagonismo, na receção à visita pascal. Ali, o crucifixo era entregue ao chefe de família que, por sua vez, o dava a beijar a todo o agregado familiar, cumprindo-se assim um ritual antigo, de muitas gerações.
Na comunidade, faz-se a comemoração religiosa em que os cristãos vivem a quaresma, tempo de preparação para a Páscoa. Exemplo disso são alguns sacrifícios/ privações, como o jejum e abstinência na 4.ª feira de cinzas e na sexta-feira santa.
Por estas bandas, a tradição dos folares da Páscoa está fortemente enraizada e parece, que depois de um certo abrandamento na sua continuidade, aí está em grande revivalismo.
Até, nas escolas, está a ser recuperada a tradição da cozedura dos tradicionais doces, que matam as saudades dos bons velhos tempos.
Tenho ainda guardado, nas papilas gustativas, o sabor e no olfato, o ar a rescender a folares, na sexta-feira e no sábado da semana santa. Em quase todas as casas se coziam folares e o ar ficava impregnado dessa fragrância adocicada.
Esses bolos redondos eram dados aos afilhados, que os recebiam em duplicado, um folar do padrinho, outro da madrinha. Na minha família com cinco filhos, contavam-se dez folares de proveniências diferentes, mas todos cozidos, nos fornos a lenha, da Gafanha da Encarnação. Sem o conhecimento do “politicamente correto”, na altura nem em política se falava, pois era proibido, era ver as crianças da mesma família a medirem, com os olhos gulosos, o tamanho dos folares recebidos e contar os ovos que cada padrinho se tinha dignado colocar no folar! O exame era minucioso e nada deixavam escapar. As comparações eram inevitáveis e os irmãos mais velhos ficavam sempre a ganhar, no diâmetro dos folares e na quantidade de ovos recebidos. Havia certas idades em que o número de ovos coincidia com os anos do afilhado.
Não lhes chegam aos calcanhares os ovos de chocolate que as criancinhas hoje recebem e que já vêm, previamente formatados e revestidos de pratas coloridas! Naqueles tempos, quase tudo era aleatório e cada folar era uma obra de arte. Às vezes, era preciso muito engenho para meter, no forno o folar, quando ele se comparava, em tamanho, à roda de um carro. Os meus ouvidos de criança atenta ouviam esses comentários, à mãe, nessas lides caseiras. O formato final do folar dependia de fatores como a temperatura do forno a lenha, do levedar da massa, da perícia da mulher que amassara os folares, da cor mais ou menos intensa resultante das cascas de cebola com que se coziam os ovos, etc, etc
Mas... era um espetáculo a receção e entrega dos folares. Chegam-me memórias do esmero que as donas de casa punham na confeção dos mesmos pois sabiam que iriam ser submetidas a uma rigorosa e exigente “avaliação de desempenho”... por aqueles “inspetores”, às vezes implacáveis!
Os afilhados daqueles velhos tempos, visitavam os padrinhos na tarde do dia de Páscoa, oferecendo-lhes um garrafão de vinho ou uma garrafa de vinho do Porto, conforme se tratava do sexo masculino, ou feminino. A segregação...sempre presente!
11.04.2014